24/02/2009

Praeludium et allegro

Violinos e discursos podem ser extremamente maçantes quando utilizados indevidamente, acarretando, em casos mais extremos, uma sonolência invencível. Posso compreender que em certas ocasiões a solenidade requeira alguma gravidade, como seria o caso de um discurso de posse numa academia nacional de letras ou na interpretação das partitas para violino solo de Bach. Mas todo cuidado é pouco para não desafinarmos, não cairmos no ridículo da pompa estéril e da suntuosidade oca. Exemplos dos mais terríveis discursos já registrados em nossa História são os de posse na Academia Brasileira de Letras, alguns deles com mais de 140 páginas de comprimento e duração superior a 4 empoladas horas! Você pode imaginar alguma coisa assim? E nem estamos levando em conta os erros de ortografia, de gramática, de geografia e de história, tão abundantes nos discursos de nossos “imortais”. Estamos nos referindo apenas à amplitude e inadequação dos textos. Exemplo lapidar de discurso desafinado é o proferido por Levi Carneiro no dia 7 de agosto de 1937. A coisa começa assim, vejam:
“Meus Senhores,
Se, algum dia, os homens cedessem o domínio da Terra a outra espécie animal, é provável que os novos senhores do planeta se empenhassem na investigação de nossos defeitos e virtudes. Coordenariam depoimentos e informações. Em alguns pontos, vários destes coincidiriam. No conceito de La Fontaine – o homem, e não a serpente, simbolizava a ingratidão; no de Ortega y Gasset – a ingratidão era o mais grave defeito dos homens; num apólogo delicioso do nosso Machado de Assis, em tantos outros documentos, se apoiaria conclusão irrecusável: o homem fora, caracterizadamente, animal ingrato.
Ficaria, assim, perpetuada a maior injustiça que os homens se fazem.
É, em verdade, mais rara que se supõe, e se diz, a ingratidão humana. Por vezes, o que parece ingratidão é recato, discrição, timidez. Há uma gratidão ostentosa, gritante. Outra, humilde, penetrada do sentimento do obséquio recebido, e, em conseqüência, comedida, quase silenciosa. Não raro profunda, chega a parecer ingratidão. Não raro, por culpa do benfeitor. Pois benfeitores há, vorazes e sequiosos de gratidão, que cobram, com juros altos, o benefício prestado; querem-no sabido de toda a gente, pela confissão, explícita e reiterada, do beneficiado; reclamam a gratidão “imorredoura”, neste mundo precário. Chamam ingrato a quem os não satisfaz. Quanto a eles mesmos, não sei, em nossa língua, palavra que os designe. Oxalá a mencione vosso trabalhado dicionário.
Mas, entre vós, não há alguém a que se pudesse ela aplicar. Todos haveis, portanto, de perceber em mim, em minha palavra, que mal a traduz, na fidelidade do meu culto continuado e antigo, na emoção do recém-vindo, a minha gratidão por vossa benevolência, ao conferir-me o prêmio mais alto de minha pobre vida. Eu mesmo o reconhecia imerecido, e, por isso, mal o soube pedir, ainda que, por incoerência imperdoável, também não soubesse persistir na relutância inicial.
Algumas vezes o tereis concedido, por antecipação, como incentivo, atraindo ao recolhimento de vosso puro labor intelectual os que sentistes dominados pela vocação suprema.
De mim bem sei que, não merecido o prêmio, era tardio e inútil o incitamento.”
Eu sei que é terrível, eu sei. Quem quiser sofrer mais um pouco pode ler o resto do discurso aqui. E não se assuste se você desconfia que certas orações do discurso acima parecem não fazer nenhum sentido porque elas não fazem nenhum sentido mesmo. Levi Carneiro foi um advogado bem sucedido, fundador e primeiro presidente da OAB, membro de uma infinidade de academias e institutos estaduais, nacionais e internacionais, mas não escreveu um único livro digno de nota. Agrippino Grieco, crítico e intelectual respeitável, afirma em seu livro Zeros à esquerda que “a Academia só o recebeu para ter um advogado esperto que a representasse em qualquer processo de despejo” já que era um “profundo entendedor das tramas do Palácio da Justiça”. No mesmo ano em que Levi Carneiro tomava posse na ABL, colocando sua bunda alva e roliça na cadeira que havia pertencido a Joaquim Nabuco, Eddie South (1904-1962) utilizava bem seu violino, que começou a estudar ainda criança na Louisiana, com a ingênua intenção de tornar-se um instrumentista de concerto. É claro que nos EUA de 1920’ uma orquestra sinfônica não era lugar para negros e, assim, Eddie começou a trabalhar em orquestras de baile em Chicago, como as de Jimmy Wade, Charlie Elgar e Erskine Tate. No final da década de 1920 Eddie trabalha com Little Mike McKendrick e, depois, forma sua própria banda, Alabamanians, realizando suas primeiras gravações. Em 1928 vai pela primeira vez à Europa, onde se torna popular e adquire admiração pela música cigana, que conheceu em Budapeste, e que o influenciaria por toda a vida. Durante os anos 30, trabalhando com sua banda em Chicago, Eddie não alcança o sucesso que outros músicos talentosos haviam atingido. Em 1937, retorna à Europa, tocando na Mostra Internacional de Paris, oportunidade em que realiza algumas gravações com Django Reinhardt e Stéphane Grappelly. Retornando aos EUA, atua em pequenos grupos, acompanha excelentes músicos, como Earl Hines e apresenta-se no rádio e na TV, mas sem atingir notoriedade proporcional à sua habilidade técnica e ao seu poderoso swing. Após sua morte, Eddie foi esquecido pelas gravadoras, falha grave com um dos mais importantes estilistas do violino no jazz e, certamente, o mais melódico de todos. Assim, tomando cuidado com os discursos da ABL e com os violinos no jazz, deixo para os pacientes ouvintes a faixa Praeludium and Allegro , retirada do álbum The Chronological Eddie South 1937-1941 – Classics 737, com David Martin no piano.

16 comentários:

Marília Deleuz disse...

O violino contrabalançou o discurso.

Anônimo disse...

Excelente !
Nessa música, Eddie mostra sua influência erudita em muitas frases, cheias de arpejos, etc... mas mescla também com frases mais swingadas, com uma cara um pouco mais jazzística.
Um violinista fabuloso que eu indico totalmente, é o Florin Niculescu, que acompanha Biréli Lagrène.

Meu bloguinho abandonado tem novidades ! Apareçam por lá tb.

Abraços,
Daniel.

http://beblogjazz.zip.net

Frederico Bravante disse...

Os dois são chatíssimos Lester, tanto os violinos quanto os discursos de posse na ABL. Viva o improviso, o trompete e o sax tenor!

Anônimo disse...

Ai, eu tb. nao gostei...!

Anônimo disse...

Ai, eu tb. nao gostei...!

Anônimo disse...

É... eu não achei tão ruim assim.
Concordo que este som não tem quase nada de jazz, mas devemos levar em conta a dificuldade de instrumentistas eruditos tocarem música popular. Ainda mais naquela época...
Na época em que isso foi gravado, devia ser algo inovador um violino sair improvisando. Mesmo porque, o som de um violino solando com uma Big Band, certamente iria sumir.

Vejam no You Tube aquele violinista que eu falei ali em cima:
http://www.youtube.com/watch?v=dXwgcv24Hhs

É uma onda "Djando-Grapelli" total, mas é bom...

Unknown disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
figbatera disse...

Nakamura, partindo daqui, já fui lá visitar seu blog; gostei muito, parabéns!
Mais uma importante fonte de consulta e de boas músicas e vídeos pra se curtir.

Anônimo disse...

Lester, valeu pelo link ali na sua página !

Anônimo disse...

O "Tie Break" lá em cima sou eu, Daniel Nakamura. Pra quem quiser me xingar...rsrs.

Anônimo disse...

Hummm... desconsiderem o post acima. Consegui apagar o comentário.

Salsa disse...

Violino... nessa mandada aí até que funciona - violino é para música dita erudita. No jazz, só gostei de um disco: grapelli interpretando Cole Porter. No mais, parece uma muriçoca no cio.

Anônimo disse...

Prezado Salsa,

Uma singela recomendação para confirmar ou reformar tua opinião “Duke Ellington's Jazz Violin Session” lançado originalmente pela Atlantic em 1963 em forma de cd - com os direitos comprados pelo Wounded Bird Records - em 2004.

Anônimo disse...

violino é nocivo

Anônimo disse...

Discordo, Thiago. Nocivo é o preconceito.
Veja o Florin Niculescu que eu "linkei" ali em cima.

Anônimo disse...

Peço licença a todos mas violino é um pé no saco. Solo então...