08/04/2010

Os benefícios da segunda fermentação

John Lester ainda nem era nascido quando comecei a trabalhar na Hanzell, no final da década de 1950. Localizada em Sonoma, California, essa pequena vinícola foi o berço da revolução que, duas décadas mais tarde, colocaria os vinhos californianos em pé de igualdade com os franceses, até então tidos como o padrão indiscutível de excelência. Foi ali, atuando como auxiliar direto de Bradford Webb, bioquímico graduado em Berkeley que dirigia a vinícula sob o título de maître de chai (mestre de adega), que aprendi os rudimentos da vitivinicultura. Sim, quando desembarquei na California, como mais um clarinetista de jazz desmpregado, eu não entendia absolutamente nada sobre vinhos ou videiras e admito que cheguei a plantar algumas mudas de cabernet sauvignon de cabeça para baixo, no que fui prontamente advertido por Peter Mondavi, o famoso vinicultor da Charles Krug Winery, meu primeiro empregador na região. Mas aprendi rápido de que lado brotam as uvas e caí nas graças de James Zellerbach, empresário de sucesso que eu havia conhecido durante a execução do Plano Marshall, que promovia a reconstrução da Europa após a Segunda Guerra. Cavaleiro da Confrérie des Chevaliers du Tastevin, associação que enaltece o vinho da Borgonha, Zellerbach aprendeu a admirar os dois vinhos mais respeitados da região: o pinot noir e o chardonnay, especialmente o tinto Romanée-Conti e o branco Meursault. Foi ali, tocando Debussy durante um desses encontros, que Zellerbach convidou-me a tocar cool jazz na California, estilo que, segundo ele, eu certamente aprovaria.

Retornando aos EUA, Zellerbach decide que produziria na California seus dois vinhos favoritos, contando para isso com sua vinícola (foto) construída em madeira e telhas de ardósia, nos moldes da Clos de Vougeot, na Borgonha, onde aconteciam as reuniões da Confrérie. Seu objetivo era o de produzir vinhos tão bons quanto os franceses e para isso contou com a ajuda dos pesquisadores da Universidade de Davis e os conhecimentos dos maiores especialistas em vinhos da California e da França, entre eles Ivan Schoch, Louis Latour, André Tchelistcheff, Harold Berg e John Ingraham. Foi com a ajuda dessas pessoas que Zellerbach trocou os grandes barris de sequóia ou carvalho americano, comuns na California, pelo envelhecimento em pequenos barris de carvalho francês. Além disso, construiu imensos tanques de aço com parede dupla, por entre as quais fazia circular água resfriada, mantendo assim a temperatura ideal para a fermentação, o que mantinha o sabor frutado dos vinhos, eliminando o característico sabor 'queimado' dos vinhos californianos, quase sempre fermentados muito acima das temperaturas européias. Foi também na Hanzell que se evitou o escurecimento do vinho branco, decorrente da oxidação resultante do excessivo contato com o ar, o que lhes retirava o sabor e os tornava acastanhados. O problema foi eliminado colocando-se uma camada de nitrogênio sobre os tanques.

Contudo, a maior inovação trazida pela Hanzell foi o controle da fermentação malolática, isto é, a segunda fermentação pela qual passa o vinho, tornando-o mais suave e maduro. A fermentação malolática ocorre normalmente nos vinhos da Borgonha feitos a partir da pinot noir e da chardonnay, enquanto descansam nos barris. Mas, na California, as coisas não eram assim tão simples. A segunda fermentação raramente ocorria em barril e, em certas ocasiões, dava-se no vinho já engarrafado, fornecendo-lhe uma efervescência que poderia fazê-lo explodir. Sabendo que a segunda fermentação era responsável pela eliminação do terrível ácido málico, sendo fundamental para atingir o nível de excelência francês, Zellerbach e seus colaboradores persistiram em conseguir uma segunda fermentação induzida por leveduras, até que, em 1959, a Hanzell produziu o primeiro vinho da história a ter uma segunda fermentação controlada. Em Roma, servindo como embaixador na Itália, Zellerbach servia seus vinhos aos convidados, sem lhes contar a procedência. E imaginem como ficava feliz quando alguém lhe dizia que seus pinot noirs e chardonnays eram certamente borgonhêses. James Zellerbach morreu em São Francisco, no dia 3 de agosto de 1963. Infelizmente, sua esposa nunca demonstrou interesse pela vinícola e a safra de 1963 sequer chegou a ser produzida. Meu único consolo é ter bebido com James um maravilhoso Hanzell Pinot Noir 1962, durante o show de Albert Ayler na Finlândia, no dia 30 de junho de 1962. De tão bom o vinho, até Ayler soava mais macio e sedutor. Para os amigos fica Summertime, faixa que certamente foi beneficiada pela segunda fermentação. Com Ayler estão Heikki Annala (b), Herbert Katz (g), Martti Äijänen (d) e Teuvo Suojärvi (p).

11 comentários:

John Lester disse...

Bons tempos meu velho. E que álbum é esse de Ayler?

Grande abraço, JL.

APÓSTOLO disse...

Com essa história litúrgica sobre o elixir dos Deuses, até Ayler é degustável.
Bela experiência, é a vida que se leva plantando, colhendo, maturando, fermentando....

Internauta Véia disse...

Que vida rica e fascinante tem tido Mr. Frederico Bravante...!

Depois da adorável resenha, e Summertime duplamente fermentado, que para mim, está magnífica!, corri para pegar uma taça de vinho branco, mas não encontrando nenhum, me contentei com um Cabernet Franc chileno( Marchigüe), bem antes do almoço!

O que é capaz de fazer uma resenha maravilhosa e Summertime duplamente fermentado...

pituco disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
bia disse...

delicia...

pituco disse...

sr.frederico,

postagem piramidal...parabéns

abraçsonoros e pacíficos

Érico Cordeiro disse...

Caro Bravante,

Nessas suas andanças pela Califórnia, a bordo de hectolitros de vinho e doses paquidérmicas de West Coast, certamente deve ter topado com um antepassado dileto - outro veterano da Guerra Civil Espanhola - que naquela época ganhava a vida como cocheiro de diligência de um parque à Westworld (sem Yul Brynner) e, nas horas vagas, ensinava sax alto a jovens aspirantes a músico da Costa Oeste, como Sonny Criss e Art Pepper.
Seu nome era Sebastião Cordeiro, mas para facilitar a carreira artística e a pronúncia dos gringos, adotou o pseudônimo de Bastian Cord e era meu querido tio avô, de saudosa memória.

Consta que as primeiras mudas de uva cabernet sauvignon foram por ele entregues a Peter Mondavi, que assim começou a sua carreira de sucesso como vinicultor.

Também há relatos de que o grande unsung hero do sax alto, Bastian Cord, costumava se apresentar no lendário Elks Club, desafiando gente como Dexter Gordon, Teddy Edwards e Wardell Gray. Invariavelmente, o bravo Bastian perdia esses duelos, mas seu nome está lá, nos anais do jazz e da produção vinícola da Califórnia.

Ótima resenha, Mr. Bravante - e aproveito para informá-lo que já consigo extrair do meu próprio sax alto uma sonoridade bastante próxima à do músico postado, aquele cujos álbuns, segundo a crítica, teriam impacto semelhante a alguém gritando uma certa palavra em plena Catedral de Saint Patrick.

Abraços!

Carioca da Vila disse...

Adorei a faixa, e a resenha está...ha, vou falar: PIRAMIDAL!

Frederico Bravante disse...

Prezados amigos, apesar das brincadeiras, todos os fatos narrados na postagem são verídicos. Basta que o leitor dedicado efetua as pesquisas de aprofundamento do tema.

Quanto ao álbum, trata-se de Holy Ghost, um box-set com 10 cd's, contendo faixas raras e inéditas, abrangendo o período de 1962 a 1970. John Coltrane, após ouvir Ayler, perguntou: Cara, que tipo de palheta você está usando?

F. Bravante

Andre Tandeta disse...

Senhor Bravante,
belo e ilustrativo texto. Mande mais historias como essa daqui.
Quanto ao Ayler .....bem ,deixa pra la.
Abraço

APÓSTOLO disse...

Prezado BRAVANTE:

A pergunta de COLTRANE para AYLER foi absolutamente lógica, já que COLTRANE sempre foi um emérito "colecionador" de palhetas, sempre portando algumas dezenas diferentes, que aplainava, cortava, aparava, em busca da sonoridade perfeita.
Músicos são músicos.....