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09/12/2009

O dia em que a Terra parou

Foi grande a confusão quando um sorridente Tobias Serralho apareceu na última reunião do Clube das Terças, o mais longevo e atuante clube de jazz do Espírito Santo. André e Pedro levantaram-se imediatamente, dizendo que iriam fumar fora do shopping. O presidente, Reinaldo, franziu a testa inconscientemente, como que prevendo o pior. Chico bebia tranquilo seus fartos litros d'água trazidos de casa, indiferente aos avisos de que água demais faz mal. João e João Luiz foram beber aquele café, enquanto Luiz Paixão cantarolava, ajeitava os suspensórios e espremia os olhos, tentando identificar o desconhecido que se aproximava com passos firmes. Salsa e Rogério partiram para o Balacobaco, bar tornado famoso por suas jam sessions e seus tremoços empanados. Gumercindo, recolhendo suas cinco sacolas, cada uma delas contendo algumas dezenas de raros lp's de maracatu, partiu em direção incerta, rumo ao lavabo. Grijó permanecia sentado, tronco ereto, cada uma das mãos sobre seus respectivos joelhos e, indiferente à tempestade que se aproximava, relia atento seu novo romance, fazendo algumas anotações esporádicas nos cantos das páginas, anotações que, segundo ele, serviriam ao seu discurso de lançamento do livro, marcado para amanhã, dia 10 de dezembro. Sem aparentar surpresa, John Lester levantou-se para receber o amigo maranhense, um belo exemplar de caboclo esculpido pela severa espátula da caatinga baiana.

Sim, Tobias passou a infância em Cocorobó, cidadezinha da região conhecida como Sertão de Canudos, na margem direita do rio São Francisco, próximo às cabeceiras do rio Vaza Barris, um dos locais mais secos do mundo. Após um longo abraço, necessário para aplacar o distanciamento de quase uma década, Lester comete o erro de convidar o amigo para sentar-se à mesa, no que é firmemente impedido pelo presidente Reinaldo e pelo vice-presidentedo Luiz Paixão. Informam em duo, com certa dose de orgulho, que àquela mesa sentam-se somente os verdadeiros amantes do jazz. John Lester intercede em favor de Tobias, alegando uma série de antecedentes e atenuantes. Inflexíveis, o presidente e o vice são apoiados pelos demais sócios, todos antipáticos à idéia de franquear cadeira tão nobre a um desconhecido curioso e, o que é pior, muito sorridente. Foi quando Tobias, com educação mas determinado, propos à diretoria um desafio: ele faria uma pergunta sobre jazz aos membros do clube: se ninguém soubesse a resposta, ele poderia se juntar aos sócios. Todos concordaram imediatamente, imaginando que Tobias seria devidamente massacrado pelas toneladas de conhecimento acumulados ao longo de quase vinte anos de reuniões do Clube das Terças. Como que ajeitando a cartucheira, Tobias ajusta o cinto e dispara: quem era o pianista do primeiro conjunto de bebop a tocar na 52nd Street?

Um imenso silêncio tomou conta da mesa de reunião, enquanto os membros do clube entreolhavam-se entre apreensivos e assustados. Não lembro quem esboçou uma resposta, no que foi prontamente impedido pelo presidente: estamos diante de uma complexa questão, alertou ele. Precisamos de muita calma, concordou Luiz Paixão. Salsa, mais desinibido, perguntou a Tobias em que ano aconteceu a coisa, e Tobias respondeu: 1944. Fernando, sempre preocupado com as fontes, perguntou de onde ele teria retirado tal informação, e Tobias respondeu: foi do Gramophone Jazz Good CD Guide, 2nd edition, 1997, página 606. Sem graça e engolindo em seco, Fernando agradeceu. Arcemir, o mais negro dos integrantes do clube, retirando seu chapéu Panamá e ajeitando as vistosas meias listradas calçadas por sapatos brancos, insinuou que o pianista negro deveria ser ou Bud Powell, ou Thelonious Monk. Tobias informou-nos que o pianista era branco, o que só fez aumentar nossa perplexidade. Num ato desesperado, André fez seu blefe, murmurando de forma audível que, então, ou foi Al Haig, ou foi Lennie Tristano. Tobias, sempre generoso, informou a todos que não, não foi nem Haig nem Tristano. Enquanto alguns membros abandonavam a cena do crime, nosso presidente solicitou a Tobias que informasse, caso fosse possível, quais os integrantes desse tal grupo de bebop, o primeiro a se apresentar na famosa 52nd Street de New York. Tobias, quase com pena, informou: o grupo era co-liderado pelo trompetista Dizzy Gillespie e pelo contrabaixista Oscar Pettiford, acrescentando que o baterista era Max Roach.

Após quase três horas de tentativa e erro, e já visivelmente abatidos, fomos obrigados a permitir que Tobias senta-se à mesa, ávidos pelo nome do pianista. Tobias, então, informa que o pianista era George Wallington, provavelmente um dos primeiros pianistas brancos a dominar o idioma bop. Por sua técnica e velocidade, foi muitas vezes comparado a Bud Powell, muito embora possuísse um estilo mais melódico, sendo também muito convincente na interpretação de baladas. E Tobias prosseguiu: Wallington foi também um competente compositor - ouçam, por exemplo, Godchild e Lemon Drop. Suas gravações em trio são excelentes e, embora mal remasterizadas, as gravadas para a Prestige em 1952 e 1953 foram lançadas em CD, com Charles Mingus, Oscar Pettiford, Curley Russell (b) e Max Roach (d). Para os amigos, a apimentada faixa Sqeezer's Breezer , com esse pianista, quem diria, siciliano nascido em Palermo, em 1924.