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22/12/2007

Codices rescripti

O primeiro palimpsesto que tive em mãos foi o que continha A República, de Cícero. Comendo bolo de aipim e mergulhada no couro cheiroso da imensa poltrona de vovô Acácio, ouvi com atenção a estória desses maravilhosos pergaminhos que, durante a Idade Média, tiveram seus textos clássicos apagados (vovô dizia ‘borrados’) para abrigarem obras teológicas. Era assim que, por restrições de ordem prática e econômica, os defensores da fé resolviam o problema da escassez de pergaminhos, raros e valiosos naqueles dias de Boécio. Apontando para mim, vovô disse: “Esse aí, em suas mãos, foi recuperado a partir de um Comentário de Santo Agostinho aos Salmos.” Através de delicados processos químicos, vovô Acácio e seu jovem discípulo Reinaldo Santos Neves conseguiram reconstituir uma série de textos e fragmentos de obras clássicas escondidos sob outros textos, chamados codices rescripti, ou seja, códices reescritos. Foi assim, disse ele, que tivemos acesso a alguns escritos de Palamedes, Eurípides, Jasão, Plauto e Estrabão, entre outros. Na verdade, tal prática já era utilizada na Antiguidade, mas somente na Idade Média se popularizou, em o nome de Deus. Na Renascença é que se iniciaram as primeiras tentativas iluminadas de recuperação dos textos ocultos em palimpsestos. Vovô dizia que os codices rescripti lembram um pouco os alernate takes de jazz, muitos deles abandonados e esquecidos em alguma estante ou gaveta. Ou lembram, ainda mais, os tributos prestados pelos discípulos aos seus mestres, coisa cada vez mais comum no jazz.


Nessas homenagens, músicos prestam seus débitos, reinterpretando seus temas ou compondo sob sua influência. Por debaixo delas, das homenagens, podemos, segundo vovô, resgatar os originais. São incontáveis os tributos a, por exemplo, Coltrane, Monk ou Parker. Hoje, sentada na varanda, lembrei daquela tarde incrível com vovô. Eu ouvia o álbum Reserge, o único tributo a Serge Chaloff que conheço, lançado pelo selo Maxanter. Quem lhe presta a homenagem é o copista e saxofonista holandês Rik van den Bergh, acompanhado por Marco Kegel (as), Jan Smit (as), Simon Rigter (ts), Sjoerd Dijkhuizen (ts), Erik Doelman (p), Frans van Geest (b) e Gijs Dijkhuizen (d). Bem, agora é continuar procurando, com Reinaldo, o pergaminho perdido da Longa História.

Rik van den Bergh ...