17/03/2007

A Jaca De Condillac

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Não podemos negar que Mr. Salsa tem se esforçado em ouvir algo além de Dexter Gordon e Sonny Rollins. Prova disso é sua última resenha experimentalista, onde ele se refere subliminarmente à Estátua de Condillac. Em seu Tratado das Sensações, o pensador francês constrói uma estátua de mármore em cujo interior podem ser inseridos cada um de nossos sentidos, de acordo com nossa intenção de pesquisa. Assim, adicionando à estátua apenas o sentido do olfato e aproximando-lhe uma rosa, temos duas situações: para um observador externo, temos uma estátua cheirando uma rosa. Para a estátua em si, percebe ela apenas o aroma de uma rosa. Adicionando à estátua o sentido da audição, a situação, para a estátua, não se altera. Adicionando-lhe a visão, temos uma estátua que vê a imagem e sente o aroma de uma rosa. Essas combinações de sentidos, segundo Condillac, nos permitem formular juízos estéticos muito distintos daqueles que habitualmente consideramos bastante comuns e óbvios. A estética seria, assim, uma combinação complexa de nossos sentidos na representação do mundo que percebemos. A questão estética, desde Plotino, Sócrates e Platão, sempre esteve associada ao bom e ao justo: o belo seria aquilo que é bom e justo.

Ocorre que, ao contrário dos juízos de existência, os juízos estéticos são eminentemente juízos de valor, além de serem extremamente subjetivos. Ora, se há uma jaca sobre a mesa, não teremos muitos problemas em concordar com a existência dessa jaca sobre a mesa. Se alguém discordar de nós sobre sua existência, poderemos, num último recurso, pegar a jaca e largá-la sobre o pé do incrédulo. Até porque aquele cheirinho enjoado da jaca faria a estátua de Condillac torcer o nariz. Nosso problema não é esse. O problema começa quando você acha que a jaca é uma fruta linda e jeitosa, ao passo que eu a considero desajeitada e horrenda. Estaríamos aqui atritando juízos estéticos (belo-feio) de um lado com juízos não-estéticos, ou científicos (jaca-não jaca) de outro. A noção do belo não é algo matematicamente demonstrável, mas sim o resultado de uma satisfação desinteressada: você nem ninguém é ou pode ser forçado ou obrigado a gostar de alguma coisa: você simplesmente gosta ou não gosta.


Ao contrário dos demais juízos de valor, onde geralmente há a satisfação de um desejo ou a correspondência com uma expectativa moral pré-existente, o juízo estético é livre em sua manifestação ou, como costumam dizer, é uma finalidade sem fim. Não há padre, patrão, tese moral ou dissertação nutricional capaz de fazer alguém gostar de jaca se esse alguém não gostar de jaca. Alguns pensadores modernos têm tentado abordar a questão estética de forma mais ampla, combinando a noção do belo com a noção do feio, do organizado com o do desorganizado, do cheiroso com o do fedorento e por aí vai. Na música a coisa não tem sido diferente. Se você mal nasce e sua mãe já lhe enfia pequenos nacos de jaca goela abaixo e se você cresce vendo seus pais, parentes e amigos comendo jaca alegremente, muito provavelmente você gostará de jaca ou, no mínimo, comerá jaca sem muitos traumas. Ocorre que há indivíduos estranhos, muito estranhos mesmo, do tipo que enfiam o pé na jaca ou ouvem jazz. Apesar de tudo e todos afirmarem que o belo e bom é Djavan, Carlinhos Brown e Tiririca, o pessoal do pé na jaca insiste em ouvir Lennie Tristano, Jacob do Bandolim ou Gerry Mulligan.


Eis aqui mais uma faceta da estética: apesar de sofrermos grande influência cultural sobre o que é e o que não é belo, sempre nos restará um espaço de liberdade de escolha nessa seara. O que irrita e fascina na estética é exatamente essa incapacidade de ser modelada, forjada e entregue à domicílio. A idéia de belo é um dos últimos refúgios de nossa liberdade individual nesse mundo cada vez mais igual e monótono. Por isso, deixo para Mr. Salsa, e para quem mais odiar jaca, as faixas 1) Old Folks com o saxofonista Daniele D’Agaro (que enfia um dedo na jaca) e 2) Live At Willisaw Jazz com o também saxofonista Lucien Dubuis (que mergulha na jaca). E notem como a marmota do vizinho é muito mais bonita que a nossa.

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12 comentários:

Anônimo disse...

Prossigamos: se a jaca fosse jazz, para eu dela gostar necessário seria que a jaca fosse uma jaca especial que eu pudesse considerá-la bela e gostosa. Mesmo gostando de jaca não seria qualquer jaca que me apeteceria, pois.
Daniele D'Agaro, por exemplo, se jaca, com esse nome que nos soa, para um homem, meio gay, seria uma jaca gay.Mas não deve ser gay, porque ele toca saxofone, e toca saxofone como um homem toca saxofone e, por isso mesmo, eu não enfaria o dedo nessa jaca, mas, com certeza, eu ouviria o disco. Luicien Dubuis, logo nos primeiros acordes, lembrou-me Thredgill de triste lembrança. É uma jaca que não chega a dar nó nas tripas, mas convém apreciar com método para não advir seqüelas mais graves como, por exemplo, começar a parar em esquinas engarrafadas para se deleitar ouvindo buzinas, freiadas bruscas, xingamentos e aceleradas rancorosas como se fosse uma sessão com dexter e rollins.

Anônimo disse...

Fiquei empanturrado de tanta jaca.Gostei mesmo foi da foto em preto e branco de Virginia Lane, cercada de peixinhos e cavalo marinho.

Anônimo disse...

Por essas e outras é que a filosofia está morrendo...

O primeiro nem ouviu o diálogo belíssimo entre o contrabaixo e o sax de Dubuis.

O segundo prefere o peixinho à Virgínia Lane.

Então eu pergunto: para onde esse mundo vai?

Anônimo disse...

Aprenda a ler Jazzseen. O Segundo fica com Virginia Lane e deixa os peixinhos e o cavalo marinho para você. E o "belíssimo" diálogo entre o contrabaixo e o sax é só você que acha.

Anônimo disse...

O pior foi que ouvi. Apenas não gostei. Mas, concordo com João, a Virgínia batia um bolão.

Anônimo disse...

Na minha opinião, Old Folks, com o tal D'Agaro, tirando o chilique free do início, dá pra ouvir numa boa. Estou ouvindo agora a faixa com Lucien Dubuis, até agora inteiramente free, e achando um porre. Mas se alguém gosta dessas coisas, gosta mesmo, de verdade, não sou eu que vou discutir. Cheguei a uma parte agora que lembra as coisas que Mingus fazia, só que Mingus fazia muito melhor, e quarenta anos atrás. E vou ficar por aqui, no comentário e na faixa.

figbatera disse...

Tudo muito bom, todo mundo tem direito de defender o que gosta, etc.
Mas misturar Djavan com Tiririca e Carlinhos Brown, tb já é um pouco demais, né?
E falando em beleza, tb adorei a foto da Virgínia Lane com suas formas "arredondadas", longe do padrão esquelético vigente; e...de que "peixinhos" vcs estão falando??!!!

figbatera disse...

Ah! E quanto às músicas, gostei só da primeira. É meu direito, né?

John Lester disse...

Caro Olney, a idéia é exatamente essa: conhecer, ouvir, trocar idéias sobre tudo que acontece no jazz. Quanto ao Djavan, de fato ele não merece figurar ao lado do Tiririca. Aliás, por mim, nenhum dos dois merecia sequer ser citado na resenha. O único cantor da mpb que eu respeito é o Falcão, aquele que diz: dinheiro não é tudo, mas é 100%. Todo o resto é previsível, repetitivo e enfadonho.

Anônimo disse...

Pô, sacanagem Lester! Eu adoro jaca!!!

Roberto Scardua disse...

Claro que Falcão é muito melhor que Djavan. Ou, no mínimo, muito mais divertido.

figbatera disse...

Pois eu acho isso pura implicância, radicalismo mesmo.