Vários especialistas escrevem e vendem milhares de livros tentando nos dizer o que é o jazz. Quase sempre, no início dessas obras, assumem uma traiçoeira imagem de humildade repetindo as palavras de Louis Armstrong: ‘se você precisa perguntar o que é jazz, então você nunca vai saber’. Mas, aos poucos, esses especialistas não se agüentam e começam a escrever uma série de bobagens. Uma delas, bastante comum nos manuais, é ridicularizar as opiniões dos próprios músicos de jazz sobre o que seja jazz – ora, se as pessoas que fazem jazz não sabem o que tocam, como um especialista teórico em jazz vai saber? Jo Jones, grande baterista e arremessador de pratos, dizia que jazz é ‘tocar o que se sente’. Para o sempre amistoso Miles Davis ‘jazz é uma palavra crioula que os brancos despejaram sobre os negros’. Depois da sessão de humildade e das citações, os teóricos partem para a construção de imensos sistemas axiomáticos, cuja finalidade é comprovar que o jazz pode ser traduzido em palavras, partituras e gráficos. A grande maioria desses sistemas não passa de um giro retórico, repleto de notas de rodapé, quase sempre financiados por alguma universidade (aquele local onde se aprende a não dizer nada em vários volumes). As falácias são quase sempre as mesmas: que o jazz nasceu em New Orleans; que nasceu por volta de 1900; que foi criado pela mistura de uma multiplicidade de estilos anteriores, entre eles as work songs, os field rollers, os spirituals, o blues e o ragtime; que é caracterizado por um ritmo complexo e ‘propulsivo’ de origem africana; que é caracterizado por conjuntos que tocam na base da improvisação coletiva, com solos virtuosos e liberdade melódica, quase sempre com referência à harmonia européia ligeira ou, dependendo da época, profundamente modificada.
Ou seja, não chegam a lugar algum. O que me parece realmente significativo no jazz é o elemento sociológico, elemento que raramente é tratado – melhor seria dizer enfrentado – pelos críticos: quantos dos amigos navegantes sabem qual o número de judeus mortos no holocausto nazista? Creio que um bom percentual de leitores responderá 6 ou por volta de 6 milhões. E não me venha com aquela estória de que faltou orégano que o assunto aqui é sério. O mundo todo chorou esse crime, Hollywood promoveu muito esse choro, todos fizeram alarde, seja por um sentimento de indignação sincero, seja por interesse diverso ou escuso. O que quase ninguém chorou, o que ninguém denunciou devidamente, é que o número total de escravos importados da África não é conhecido exatamente. O que se sabe é que 900 mil foram trazidos para a América no século XVI; aproximadamente 3 milhões no século XVII; mais 7 milhões no século XVIII e 4 milhões no século XIX. Para cada um desses escravos que chegavam vivos em seus cativeiros, cerca de 5 eram mortos durante as capturas ou em alto mar. Ou seja, o comércio de escravos significou a eliminação de 60 milhões de africanos. Bem mais que os 6 milhões de judeus. E esses dados são fruto de pesquisas sérias (veja, por exemplo: The Black Triangle, de Armet Francis ou The Black Holocauste For Beginners, de S. E. Anderson).
A questão crucial então, como sempre salientou Miles Davis, é dizer que o jazz é o fruto musical de uma imensa revolta de 15 milhões de escravos, de 15 milhões de pessoas negras lamentando sua dor. O jazz nasceu como um código musical que procurava unir um povo dizimado, humilhado, seviciado, explorado e, após a abolição, abandonado por seu donos. Um povo que, apesar de tudo, precisava dançar, sorrir, relaxar, amar, experimentar e criar. O jazz é isso: é o que Jackie McLean e seus amigos Bill Hardman (t), Mal Waldron (p), Paul Chambers e Philly Joe Jones (d) fazem no álbum Jackie’s Pal (no pw), gravado em 31 de agosto de 1956 para a Prestige. Oxalá!
10 comentários:
Espetacular! Um dos melhores álbuns de jazz que já ouvi.
Assim sendo, vou ali no Oleari mandar aquele sonzinho básico.
Isso sem contar as atrocidades de Leopoldo II contra os congoleses. Dizimou a raça quase toda. De 30 milhões para nove (milhões). Hitler foi mau, mas Leozinho é a desgraça total, um energúmeno no sentido literal do termo.
Mas o ponto é outro, caro JL. E a história de que a palavra jazz tem origem no vocábulo "jas", que designa coito ou qualquer outra vertente no baixo-ventre?
A propósito: a frase "Se vc tem de perguntar o que é jazz, então esqueça!", não é do Fats Waller?
melodramo geral
vinicius
(em dia de predador cover)
...."E esses entendidos terão um leque de argumentos com o qual se abanar: os músicos e cantores de jazz vieram da pobreza, sofreram o suficiente para saber o que é "o blues". Além disso o jazzista negro jamais faria qualquer tipo de concessão comercial , preferindo continuar pobre e "autentico". Para completar sabiam impovisar, capacidade esta que fazia o sujeito ser jazzista ou não.
Ah, os franceses e suas teorias.Foram eles que armaram esse raciocínio nos anos 30 e 40 e, pelo visto com bons resultados, porque até hoje há quem acredite nele. É a velha tentativa de preservar o mito romântico do jazzista como uma espécie de "bom selvagem" de Rousseau: o negro miserável e perseguido, escravizado à música e a droga, mas firme e incorruptível no gueto, em seu quarto cheio de percevejos...."
..."O blues foi um ingrediente rico no que veio a se chamar Jazz, mas não foi o único ,nem mesmo indispensável. Outros ingredientes foram o ragtime, as canções de Tin Pan Alley, a música de concerto européia de fins do sec.XIX, a ópera, o vaudeville e os minstrels de reças (negra e branca), o folclore branco e, talvez mais do que todos, as orquestras ubíquas nos salões e praças de cidades dos EEUU, na virada do sec.XX. São citados alguns clássicos do jazz sem nenhum vestígio de blues: todos os discos de stride-piano do Harlem nos anos 20 e a famosa gravação de Body and Soul por Coleman Hawkins em 1939, dentre aoutras. Isso os torna menos Jazz ?...."
Não foi eu quem fiz estas considerações acima citadas, mas, meditem senhores !
Prezado Grijó, de fato há barbaridades sem fim nesse mundo. E todas produzem arte da melhor qualidade - certas vezes me pergunto se haveria arte se o mundo fosse perfeitamente bom, pacífico e redondo.
Quanto ao dono da frase, tenho autores que dizem Waller e autores que dizem Armstrong. Escolha que lhe empresto. Esse tipo de aberração é muito comum em pesquisa biblográfica - veja que os barsileiros Luiz Orlando Carneiro e Sérgio Karam afirmam em seus livros que Max Roach nasceu em 1925, ao passo que todos os 214 livros que possuo sobre jazz dizem que foi em 1924.
Um ano a mais, um ano a menos, podemos relevar, não podemos?
Quanto a quem fala pela boca de quem, o que conta é a frase.
Grande abraço, JL.
Sr.Lester, você tem mostrado ao longo do tempo que é um obstinado estudioso do jazz e de outras formas musicais. Pensei então, inteligente que é, que conhecesse os dizeres e considerações citados por mim no post de 20/8. A boca de quem afirmou e posteriormente editou foi do historiador, músico e pesquisador musical Richard M. Sudhalter, em seu último livro Lost Chords.
Esse eu não conhecia Mr. Pred. Vou ver se consuigo um exemplar.
Contudo, creio que houve alguma confusão: quem fala pela boca de quem é uma expressão usual em filosofia e que, no contexto, se referia a quem teria dito a frase 'se você precisa perguntar, nunca vai saber'. Eu me referia ao comentário de Mr. Grijó.
Perceba que nem sempre conseguimos ser o centro das atenções Mr. Pred. Mas continue tentando.
Grande abraço, JL.
Boa Lester. Esse Predador está abusado. Precisa exercitar a humildade.
interessante, bem interessante...
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