08/10/2007

Brazil

A inveja é um dos sentimentos mais amargos que podemos experimentar. E os brasileiros em geral são bastante invejosos. Quase sempre a inveja está associada ao irracionalismo, à ignorância ou à incompetência. Passeando pelas ruas limpas e tranqüilas de Santiago do Chile, com suas belíssimas construções históricas muito bem conservadas e devidamente tombadas, confesso que as invejei. A princípio minha inveja veio de forma não racional, era apenas um sentimento indefinido e pouco claro, uma vontade de que nossas ruas e calçadas também fossem tão amplas, nossos jardins tão bem cuidados e nossos prédios igualmente baixos e com aquele generoso afastamento da calçada. Também desejei que nossos cachorros de rua fossem tão gordos e que pudessem repousar ao sol tranquilamente em nossas calçadas, como fazem os cachorros chilenos. Lembrei então de nossos imundos, raquíticos e assustados cachorros de rua, sempre esperando a próxima pedrada ou chute de algum pedestre insensível. O sentimento irracional foi tomando forma, e compreendi que certas coisas se devem antes à educação e à sensibilidade que ao acaso. Ao verificar que se pode passear pelas agradáveis calçadas de Santiago sem temer assaltantes e mendigos, sem ter que desviar de carros e camelôs, sem ter que tropeçar em buracos e desníveis, percebi que estava tomado pela inveja. Tentei aplacar o incômodo sentimento produzido por aquela belíssima e bem educada cidade imaginando desculpas que pudessem justificar o descaso, a sujeira e a falta de educação das cidades brasileiras. Argumentei comigo mesmo que a inexistência de ladrões e mendigos pelas ruas deveria ser obra da terrível ditadura chilena, que provavelmente os exterminou. Mas tivemos no Brasil uma ditadura também bastante terrível que, ao fim, só fez aumentar a pobreza e a desigualdade. Argumentei que a cidade era pequena, com apenas cinco milhões de habitantes, sendo fácil administrá-la. Mas já vivi ou passei em diversas cidades brasileiras, muitas delas com menos de um milhão de habitantes, e a esmagadora maioria delas era imunda, violenta e com estreitas calçadas que nos obrigavam a andar pela rua quando cruzávamos com algum pedestre ou veículo estacionado irregularmente. Talvez a longa distância entre a profunda beleza de Santiago e a decrepitude da maioria das cidades brasileiras se devesse à nossa colonização, ou à nossa democracia, ou à nossa generosa beleza natural, ou à característica alegre e descuidada de nosso povo. Logo percebi que toda desculpa seria inútil. Era preciso reconhecer que a diferença brutal entre Santiago e as demais cidades brasileiras era fruto apenas de um elemento: a educação. Um povo educado cuida de sua cidade, varre suas calçadas, aduba e zela por seus jardins. Um povo educado defende seus prédios históricos, não chuta seus cachorros de rua e não precisa de toneladas de policiais espalhados pela urbe para conter a violência. Em sete dias e noites vagando por Santiago, vi somente dois policiais, os tais carabineiros, muito educados e de aparência nada truculenta ou ameaçadora. É fácil perceber que a violência ali não é algo contido e camuflado com dificuldade pelo poder público. A violência, de fato, não existe. Por fim, compreendi que minha inveja vinha de minha própria incompetência, da falta de árvores e jardins em minhas calçadas, da derrubada inescrupulosa de meus monumentos históricos, dos meus prédios gigantescos que projetam a sombra da especulação imobiliária na areia da praia, de meus prefeitos que aprovam tais obras, dos meus votos que elegem tais prefeitos. Minha inveja vinha da prática, já bastante comum no Brasil, de fingirmos não ver nossas crianças se drogando diante de nós, em nossas praças cinzentas e descuidadas. Sem mais desculpas para minha inveja, fui ouvir Ari Barroso interpretado por Lars Gullin. A faixa é Brazil, retirada do álbum 1951-53, Volume 7: Silhouette, lançado pela Dragon em 2005.


Gullin.mp3

14 comentários:

Anônimo disse...

Conheci o jazzseen através do site do grijó. Só podia ser coisa boa mesmo. Essa resenha me fez refletir: antes era a ditadura que nos obrigava a dizer "brasil, ame-o ou deixe-o". Agora são os artistas e os xenófobos que a repetem.

Anônimo disse...

Estava com saudade dos seus textos!

(os problemas do Brasil são tantos e tão arraigados... tipo um Renan C.)

Anônimo disse...

A inveja aumenta quando se pensa que não se está falando do velho mundo ou da América abastada. Quando se descobre que o exemplo de civilidade não vem de cima ou está tão distante. Que praticamente faz fronteira. Tão próximo de um povo que gosta de se julgar superior... Deve ter sido duro mesmo cair na real desse jeito, JL. Eu lendo aqui tive vontade de pegar em armas - quis dizer vassoura e escovão.

Anônimo disse...

Todo povo tem o presidente que merece. Nós temos o Lula...

Anônimo disse...

falando em inveja, queria tocar sax igual ao lars!

Anônimo disse...

Adorei Lester! Santiago realmente é assim...Tudo de Bom!!!! exatamente como você!

Anônimo disse...

Concordo que nós somos responsáveis, quanto ao Lula, este é apenas o presidente do momento ( o que não o exime de culpa! )e nossos problemas vêm de longe...Educação de boa qualidade é primordial, sem professores bem formados e bem pagos não é possível atingirmos este estágio...

Cinéfilo disse...

Desde a última reunião do Clube das Terças que JL mostrou-se indignado e frustrado com as diferenças entre as culturas chilena e brasileira. É isso aí, JL: expurgar os capetas via blog e, de quebra, homengear o velho Ari, flamenguista e boa referência.
Só faltou, além da ignorância, da incompetência e da inveja, falar da vergonha que, em muitos casos, ser brasileiro acarreta.

Anônimo disse...

Opa! Ainda tava deprimido com o texto do Lester quando alguém aí, sem querer, me trouxe o alento: só não tenho vergonha, incompetência, ignorância ou inveja profunda pq SOU TRICOLOR DE CORAÇÃO, SOU DO CLUBE TANTAS VZS CAMPEÃO...

Melhor do Rio ô ô ô ô...

John Lester disse...

Enfim um tricolor! Nem tudo está perdido!!!

Anônimo disse...

Pelo amor de Deus! Vamos manter a linha. Futebol é em outro "sitio".

Anônimo disse...

Era só o que faltava, um guarda de trânsito. Sinto muito, Lunático, mas com seu apito imaginário, acabas de lembrar e agir como um. Ou ainda melhor, um juiz de futebol. Com isso, como vês, fez o assunto predominar. Vou repor a bola em jogo.

"Vocês não conhecem a covardia de seus senhores. (...). Vocês são um exército a pensar do mesmo modo. Vocês são 100 vezes mais fortes que seus opressores, vocês valem 1000 vocês mais e se deixam afrontar pelo descaramento deles! Não compreendo. Vocês têm o mais belo país do mundo, a mais bela inteligência, o senso mais humano que há, e nada fazem com tudo isso! Deixam-se dominar, ultrajar, calcar aos pés por um punhado de senvergonhas! Que diabos, sejam vocês mesmos! Não esperem que os céus os auxilie! Levantem-se, unam-se. Todos à obra! Varram a casa!"

Esse esporro em regra e por tabela, levei eu do personagem Jean Christopher, exatamente no ano do impeachment do Collor. Ocasião em que lia o livro homônimo de Romain Rolland. E que esporro. E que livro!

Anônimo disse...

Êita Ctrl C e Ctrl V da porra! O certo é: "vocês valem 1000 VEZES mais e se deixam afrontar"...

Anônimo disse...

Esse nosso Brasil é bonito e suculento como uma manga. Pena que esteja apodrecendo.