11/01/2008

Baby Face e a Navalha de Ockham

Vovô Acácio sempre dizia que escolher e recomendar álbuns de jazz é uma tarefa complicada. A discussão acerca de quais são os melhores ou os mais importantes álbuns de jazz é uma atividade ao mesmo tempo polêmica, complexa e prazerosa. No âmbito de escolha do melhor álbum sobreleva o aspecto subjetivo, onde o gosto pessoal predomina, tornando impossível a determinação de qualquer verdade absoluta acerca do tema. “É aquele bate-boca saudável e improdutivo”, resmungava vovó Tícia lá da cozinha. Aqui, qualquer unanimidade será rara. Já no âmbito do álbum mais importante, surgem aspectos técnicos e características musicais bem definidas que podem auxiliar na determinação de valores centrais. É possível demonstrar teoricamente a evolução do jazz como arte musical, tornando plausível que a discussão saia do mundo confuso das opiniões para o mundo menos confuso das certezas, estabelecendo, então, certa harmonia de escolhas.

Não há como, por exemplo, negar a importância histórica das gravações de Louis Armstrong e seus Hot Five e Hot Seven na década de 1920, mesmo que tais gravações soem hoje culturalmente ultrapassadas para o auditório universal. Isso sem falar nos chiados e estalidos das gravações dessa época. Também não há como negar que as primeiras gravações de jazz foram realizadas por músicos brancos, em 1917. É aceitando essa realidade imperfeita que alguns sites têm apresentado a seus leitores diversos álbuns de jazz, partindo quase sempre de uma noção abstrata e pessoal de escolha dos “melhores”. Nesse excitante jogo não são raras as confusões entre a paixão e a razão, sendo quase um lugar comum o estabelecimento de listas que esquecem de adicionar ao gosto pessoal algumas pitadas mínimas de noções históricas e técnicas. Segundo vovô Acácio, para elaborarmos uma leva de álbuns, é necessário utilizar a chamada Navalha de Ockham, famoso barbeiro escocês que defendia a economia de hipóteses e a inexistência de ordem necessária no mundo, esse lugar caótico onde qualquer ordem é sempre fruto da convenção entre as pessoas. Por suas idéias, Ockham foi expulso de Oxford e, mais tarde, excomungado. Também Ockham tentou elaborar sua lista dos melhores tocadores de alaúde do século XIV, entrando em conflito direto com São Tomás de Aquino, que defendia a existência de uma lista melhor que qualquer outra, elaborada pela vontade divina.

Ockham vai lutar até o fim de sua vida pela idéia de que não existe tal lista: todo ouvinte é livre para escolher seus álbuns prediletos e que toda autoridade em assuntos de alaúde é fruto, apenas e tão somente, de convenções e acordos. Vovô Acácio costumava utilizar dois critérios para a escolha de seus álbuns de jazz: 1) Em termos históricos e técnicos, ele tentava determinar quais gravações traziam alguma inovação significativa e original que serviria de modelo para álbuns posteriores ou, ainda, aquelas gravações que representam melhor um determinado estilo ou movimento; 2) Em termos de gosto pessoal, ele sempre tentava conjugar seu prazer pessoal com os álbuns constantes do item 1) acima. O único problema, como dizia vovô, é a existência de uma infinidade de álbuns maravilhosos de jazz, onde muitos deles não representam nenhuma inovação e não possuem qualquer importância histórica específica: são apenas belos. Por isso, ele sempre repetia: primeiro é preciso passar a navalha e decidir o que se quer: queremos conhecer e estudar o jazz? Então precisamos dar mais importância ao item 1. Queremos ter apenas prazer, deixando em segundo plano a evolução do jazz? Invistamos no item 2, sem muita preocupação com a importância histórica ou técnica da gravação.

Guardo até hoje a primeira listinha que vovô Acácio preparou para mim, quando eu ainda usava meia três quartos e maria chiquinha. Vovô olhou para o alto, mordeu o lápis e, em cinco minutos, entregou-me a lista abaixo, dizendo carinhosamente: querida, se você não gostar de nenhum álbum dessa lista, esqueça o jazz e tente o baião, estamos combinados? Enquanto vovó Tícia entrava na biblioteca com um fumegante bule de café tirado no coador de pano, vovô foi ao toca-discos e colocou a faixa High ‘N Low, do organista Baby Face Willette, com Fred Jackson (ts), Grant Green (g) e Ben Dixon (d). E a tarde foi longa, mas passou rápida.








Louis Armstrong - Hello, Dolly! - MCA


Chet Baker - Somewhere Over The Rainbow - Bluebird


John Coltrane - Ballads - Impulse!


Count Basie – At Newport 1957 - Verve


Stan Getz - Getz/Gilberto - Verve


Dizzy Gillespie - The Alternate Blues - Pablo


Wynton Marsalis - Standard Time Vol. 6: Mr. Jelly Lord - Columbia


Bud Powell - The Essen Jazz Festival Concert - Black Lion


Zoot Sims - The Innocent Years - Pablo


Lester Young - With The Oscar Peterson Trio - Verve

14 comentários:

Anônimo disse...

Eu aceitaria um cafezinho, pode ser?

Anônimo disse...

O texto é bom. O arrazoado também. Só falta o vovô salientar as inovações que esses discos trouxeram. Isso poderá ajudar aos reles ouvintes (eu entre eles) a ponderar sobre o tema. Com certeza renderá uns bons capítulos ao jazzseen. estamos "no aguardo".

Anônimo disse...

to achando a lista meio trans, meio sem colesterol...

Anônimo disse...

ei, nao entendi nada

Anônimo disse...

Fiquei decepcionado, pois nunca esperava que tal lista fosse apresentada, ainda mais depois dos arrazoados apresentados pelo vovô Acácio, citados por Paula no texto. Então, você Paula e vovô Acácio estão expulsos e excomungados.

John Lester disse...

Querida Paula, obrigado por manter o Jazzseen durante minhas férias. Depois explique a 'lista' para nosso amigo Predador, ok?

Em breve enviarei notícias sobre um agradável jazz crusie ao longo do Tâmisa. Nem o frio no convés conseguiu conter meu tabagismo.

Beijo, JL.

Anônimo disse...

Como não sou uma estudiosa do Jazz e não tenho conhecimento técnico para julgar os álbuns e/ou as músicas, fico com o que acho bonito e me dá prazer ao ouvir. Quanto à lista, pelos nomes que acompanham os álbuns, acredito que seja de muito bom gosto, não tivesse sido elaborada por Vovô Acácio! ( o que não quer dizer que seja unanimidade, uma vez que gosto não se discute, e varia de pessoa para pessoa...)

Cinéfilo disse...

E Guilherminho mandando ver.
Ótimo texto, PN.
E a lista é boa - com ressalvas, mas toda lista as tem.

Paula Nadler disse...

Queridos amigos, adoro quando falam de mim, principalmente quando falam bem. Essa listinha que vovô Acácio preparou para mim não tem qualquer motivação técnica ou histórica. Segundo ele mesmo, são quase todos, excetuando os de Count Basie e Lester Young, álbuns menores, sem qualquer importância significativa na evolução do jazz. O que os caracteriza, segundo vovô, é a beleza. São todos discos belos e, de uma forma ou de outra, marcaram época. Lembro, por exemplo, que o Hello, Dolly, de Armstrong, foi o único álbum capaz de disputar os primeiros lugares da parada americana com os Beatles. Vovô enchia a boca quando dizia isso, com os olhos mrejados de emoção.

Quem conhece jazz, sabe que tipo de lista é. Para quem não conhece, todos os álbuns são deliciosos e, de fato, quem não gostar de nnehum deles provavelmente nunca gostará de jazz.

Beijos!

Anônimo disse...

Eu só dispenso o disco do Marsalis. Achei chatinho.

Frederico Bravante disse...

Marsalis é aquela coisa, burocrático até na colocação dos semitons.

Unknown disse...

Essa Paula escreve igual a John Lester.
São a mesma pessoa?

Paula Nadler disse...

Quem me dera escrever como John...

Anônimo disse...

Quero que me devolvam ao meu planeta de origem (Quinta Constelação de Orion) se essa Paula Nadler não é nada mais nada menos que John Lester travestido.