Talvez Luís Inácio não tenha lido A Dignidade do Homem, livro escrito pelo renascentista italiano Pico Della Miràndola em 1496. Fruto de sua tese de doutoramento, trata-se do primeiro texto a abordar de forma explícita o tema da dignidade humana. Em seu instigante texto, Pico nos conta a estória triste de uma ação indenizatória onde viúva e fazendeiro reclamam aos tribunais as indenizações devidas, respectivamente, pela perda de marido e cavalo, ocorridas num trágico acidente onde cavalo e cavaleiro são atingidos por uma biga desgovernada. Na sábia e transitada sentença, coube à viúva 50.000 liras pela perda do marido, ao fazendeiro, 250.000 liras pela perda do cavalo. As semelhanças entre sentenças dessa natureza e as atuais ‘listas dos melhores álbuns de jazz’ são imensas. Para começar, misturam-se homens (músicos de jazz) com animais (músicos de outros estilos). Em seguida, atribuem-se valores de mercado à arte que cada um desses artistas produz, enumerando-os em escalas que vão do ‘mais melhor’ ao ‘menos melhor’. Foi assim que Paul Witheman (uma espécie de Duke Ellington branco e com bochechas rosadas) foi eleito o Rei do Jazz na década de 1920. Fato alarmante se considerarmos que sua música monstruosa nunca foi jazz. O próprio Whiteman confessa em seu livro Jazz (New York: JH Sears Co., 1926, página 36), que fora despedido de uma banda de jazz de São Francisco, onde atuava como violinista, exatamente porque não sabia tocar jazz. Na mesma obra, página 20, afirma que “é um alívio poder afinal provar que eu não inventei o jazz (...). Não fiz mais do que orquestrá-lo.” Na verdade, embora constasse em todas as listas da época como ‘rei’ e ‘inventor’ do jazz, Whiteman limitou-se a desnaturá-lo com orquestrações onde os arranjos eram prévios e rígidos, sem qualquer espaço para improvisação ou sentimento. Somente alguns meninos levados que integravam sua orquestra, entre eles o trompetista Bix Beiderbecke, eram capazes de burlar espertamente as amarras impostas por Whiteman, improvisando rápida e sorrateiramente em alguns trechos quando Paul virava as costas para contar dinheiro.
Dessa forma, também no jazz os cavalos são muito valorizados, enquanto os cavaleiros costumam viver quase sem dignidade. Mas os culpados por esse estranho estado de coisas somos nós mesmos: quantas vezes não ouvimos um disco horroroso só porque a revista Up Bitch nos disse que o disco é maravilhoso e quase não tem colesterol ruim? Quantos de nós já não saltamos desesperados nos shows de Carlinhos Brown, Djavan e Falcão na vã expectativa de sermos convidados ao palco? Felizmente, embora não da forma mais fácil, a escola das facas e a educação pelas pedras me fizeram abandonar as listas e partir rumo ao sentimento contido na frase do poeta João Cabral de Melo Neto: “há um contar de si no escolher.” E a coisa facilita quando descobrimos que não existe ‘lista’ impessoal, estável e dotada de porquês suficientes. Nesse estágio podemos, porque prontos, entrar no Birdland, no dia 23 de junho de 1992, ouvir o saxofonista Rickey Woodard e colocá-lo em nossa lista dos melhores, na frente até mesmo, quem diria, de um Jan Garbarek by ECM.
Há um contar de si no escolher,
no buscar-se entre o que dos outros,
entre o que outros disseram
mas que o diz mais que todos.João Cabral de Melo Neto
Obra Completa, Nova Aguilar, página 406.
15 comentários:
Realmente, Garbarek é uma espécie de Djavan do saxofone - um pé no saco.
É isso aí: não existem mais momentos do que aqueles de principalmente.
Que bom que você resolveu abandonar a confecção de listas, mr. Lester. Elas são boas para serem desfeitas. Tenho ouvido discos das tais listas dos críticos e o escambau a quatro e tem sido de uma tristeza danada. Ouvimos (eu, Dias e Vinhas), ontem, Lloyd, Dave Douglas e Branford Marsalis. Depois serão publicados comentários no mpbjazz e no jazzigo.
Você está com toda razão sr.Salsa, pois não existem momentos de mais aqueles, do que aqueles de principalmente.
Curioso que, em mais de 700 resenhas publicadas no Jazzseen, nunca vi lista alguma proposta por John Lester. Mr. Salsa é do tipo que consegue ler coisas nunca escritas. Parabéns!
afff. Procure direito.
John, há também um contar de si no escrever...
é verdade, é verdade. Não tem lista. Confundi com o vovô ali de baixo. Foi mal.
Prezado Mr. Salsa, você conhece bem a política do Jazzseen: liberdade para expor seus pontos de vista. Se nossa colaboradora Paula Nadler resolveu apresentar uma lista confeccionada por seu querido avô, não queira recriminar a moça. Tampouco atribuir a mim, réles Editor-Chefe, a autoria da coisa.
Grande abraço, JL.
É. Viva a liberdade. viva o Jurandir, e viva o vovô.
Linda resenha Lester, por isso tanto desvario. Beijo!
Eu curto listas, nem que seja pra trocar opiniões. E concordo com o Salsa, viva a lista!
Obrigado pela dica Lester!
Quem propor ou publicar listas de melhores do jazz deverá ser expulso e excomungado. Como disse vovô Acácio: "Não existe lista, não existe melhor ou pior, o que prevalece é o gosto pessoal". Os críticos musicais e o escocês Ockham e sua navalha vão p'ros quintos do inferno.
O conhecimento é importante mas o GOSTO sempre fala mas alto.
Nossa JL vá escrever bem assim lá em Patapon... Muito linda essa resenha.
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