24/12/2008

Planos do delírio

Sábato Magaldi não é nem o mais ilustre nem o mais inexpressivo membro da Academia Brasileira de Letras. Sua incólume existência como “imortal” não lhe retira, contudo, o intato valor como pesquisador e crítico teatral, além de professor universitário dedicado. Segundo Sábato, o teatro brasileiro moderno nasceu em 28 de dezembro de 1943, data em que foi encenada pela primeira vez a peça Vestido de Noiva, de Nélson Rodrigues. A coisa se deu no Teatro Municipal do Rio de Janeiro, numa feliz reunião de coincidências: a primeira delas, e certamente a mais importante, diz com as inovações trazidas pelo texto de Nélson; a segunda coube ao polonês Ziembinski que, fugindo do nazismo, trouxe - com o grupo Os Comediantes - uma nova concepção de encenação – impondo a noção de equipe sobre o império já cansativo do astro sobre o restante do elenco - e, sobremodo, de iluminação - que faria ofuscar, com suas centenas de efeitos luminosos, o previsível triunvirato da luz da manhã, luz da tarde e luz da noite; e, terceiramente, o desenho do cenário feito por Tomás Santa Rosa – sutilmente elaborado, acompanhando a idéia de Nélson, segundo a qual a peça seria o resultado de ações simultâneas em tempos diferentes. Tomás (veja a foto) dividiu o cenário em três planos, conforme indicação no próprio texto de Vestido de Noiva. Nélson rompe, assim, com a boa e velha seqüência cronológica, misturando os tempos, fazendo com que os planos da realidade, da alucinação e da memória possam participar ativa e concomitantemente da festa do teatro. Sim, porque se ler um texto de teatro é uma das experiências mais traumatizantes da história da humanidade, assisti-la é algo incomparavelmente bom, emocionante e completo. De raro em raro durante a narrativa ouve-se a repetição do som inicial da derrapagem de um veículo, seguida do som de vidraças partidas e da sirena de uma ambulância. É como se um solista de jazz, após alguns compassos de improviso, voltasse ao tema principal. O fato inconteste mistura-se às lembranças e delírios, tecendo o desenrolar da trama como renda nunca vista por uma platéia atônita. Para Sábato, o estudioso, Nélson retirou do todo-poderoso protagonista a presença física perene e absolutamente consciente que até então sufocava nossa dramaturgia, fazendo com que as conquistas da psicanálise subissem ao palco.
No plano da realidade, os acontecimentos são mínimos, porque no universo de Nélson, eles não têm importância maior que situar a trama para o espectador, resumindo-se a pequenas falas de repórteres, gritos de jornaleiros ou comentários de médicos que atendem a acidentada. Na peça, o que conta são as memórias e os delírios da moribunda, memórias cada vez mais fracas e delírios cada vez mais fortes, conforme a morte se aproxima, memórias e delírios libertos da censura porque, agora, estão ambos sob o comando do subconsciente. E não posso acreditar que o acaso seria o responsável por Lester Young ter realizado sua primeira gravação como líder no dia 28 de dezembro de 1943. Lester, assim como Nélson, não dava a mínima para o plano da realidade – entenda-se, aqui, partitura. A sua história era contada mais e sempre no plano da memória (que lhe possibilitava armar divertidos mosaicos de citações e frases compatíveis) e no plano da alucinação (através de improvisos que, sem exagero, até hoje nos emocionam e quase nos desamparam por sua beleza inevitável). Depois, Lester volta à derrapagem, às vidraças quebradas e à sirena. Para os amigos, como presente de Natal, deixo a faixa Sometimes I’m Happy , com Johnny Guarnieri (p) no plano da memória, Slam Stewart (b) e Sidney Catlett (d) no plano da realidade e Lester Young (ts) no plano do delírio.

17 comentários:

Anônimo disse...

De Lester, por Lester até segunda ordem.Ou entrada do segundo ato.Edú.

Salsa disse...

Boa trilha para um natal possível.
Felicidades, meu velho (se fores chegado às festas; se não, felicidades assim mesmo).
Abraços,

Danilo Toli disse...

Que venha 2009!

Sergio disse...

"Felicidades, meu velho (se fores chegado às festas; se não, felicidades assim mesmo).
Abraços,"

Isso aqui é que é, faço minha as suas palavras, Salsa Klaus.

Mas é de coração os votos....... e a preguiça tbm.

Feliz natal e anos novos eternos, Jazzseen!
Sergio

Anônimo disse...

Grande Lester Young !!!!
Um abraço a turma do jazzseen e em especial ao amigo Mr.Lester sempre nos presenteando o ouvido e o cerebro e dessa vez com uma conexão sensacional:Lester Young e Nelson Rodrigues.Bravissimo ,Maestro! Voce é danado ,Mr.Lester.
Feliz Natal,o que quer que isso queira dizer.

Anônimo disse...

Também gostei demais:da resenha e da música!
Feliz Natal para todo o pessoal do Jazzseen, escribas e comentaristas...

Anônimo disse...

Excelente resenha, da associação de idéias, , desenrolar do texto , à trilha musical oferecida...Ótimo, Mister Lester, como disse o Tandeta,"presente para os ouvidos e o cérebro"!
Feliz Natal e um Novo Ano de saúde e paz para Mr. Lester e colaboradores ( os das resenhas e os dos comentários).

Anônimo disse...

Comparar a derrapagem com o riff, e o delírio com o improviso, sinistro Lester!

Anônimo disse...

oi lindo, feliz natal...

Anônimo disse...

?????????????????????

Anônimo disse...

Ah,tá!

Anônimo disse...

bravo.este blog ajudará a tornar 2009 melhor. Que voce continue iluminado,Lester

Anônimo disse...

Quem seria o nobre amigo anônimo?

Feliz 2009 Lester!!!

Cinéfilo disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Cinéfilo disse...

JL, oremos!
Freddie Hubbard, um dos grandes do sopro, morreu ontem, segunda, dia 29.
Já estava mal, pois havia sofrido um ataque cardíaco em novembro passado.
Uma perda. Morreu aos 70.

O Ipsis Litteris já fez sua parte.

A morte de FH é uma péssima notícia de fim-de-ano.
Abraço.

John Lester disse...

Prezado amigo, não poderei agradecer pela informação, dado o conteúdo da mesma.

Só me resta preparar alguma pobre resenha que possa minorar uma perda que faz nosso 2009 muito mais vazio de jazz.

Grande abraço, JL.

Anônimo disse...

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