02/12/2008

Satyagraha

Já era madrugada de sábado quando o professor, amigo e escritor Pedro Nunes me telefonava apenas para comunicar que a morte é a única coisa capaz de abalar a vaidade humana de forma definitiva. Ainda que insistamos, prosseguiu o catedrático, no epitáfio de prata, na lápide de mármore rosa ou no mausoléu de carrara, foi-se no túmulo o derradeiro murmúrio da vaidade. Era essa sua conclusão depois de afilada leitura das Reflexões Sobre a Vaidade dos Homens, de Mathias Aires, aquele que, segundo afirmava o insone mestre, seria nosso primeiro saliente filósofo. São deles ótimas frases, transcrevia Pedro Nunes: “vivemos com vaidade, e com vaidade morremos; trazem os homens entre si uma contínua guerra de vaidade; e conhecendo todos a vaidade alheia, nenhum conhece a sua: a vaidade é um instrumento que tira dos nossos olhos os defeitos próprios, e faz com que apenas os vejamos em uma distância imensa, ao mesmo tempo que expõe à nossa vista os defeitos dos outros ainda mais perto, e maiores do que são. A nossa vaidade é a que nos faz ser insuportável à vaidade dos mais; por isso quem não tivesse vaidade, não lhe importaria nunca que os outros a tivessem”. Açodado, porquanto recolhesse do madureiro um já alaranjado mamão, cuidei de interromper o empolgado interlocutor para lembrar-lhe que Mathias, nesse mesmo texto, adverte que “nasceu o homem para viver em uma contínua aprovação de si mesmo”. E, embora Mathias não o tenha afirmado, eu poderia apostar que tal aprovação é buscada quase que exclusivamente junto a terceiros, e raríssimo junto a nós mesmos. Enquanto sibilava uma pitada de rapé, concordei com o amigo sobre a beleza e a importância das Reflexões Sobre a Vaidade dos Homens, quanto mais quando Mathias nos adverte que “o juízo é um entendimento sólido; por isso pode haver entendimento sem juízo, mas não juízo sem entendimento: ter muito entendimento às vezes prejudica, o ter muito juízo sempre é útil; nas ações de um homem conhecemos seu juízo, e no discurso lhe vemos o entendimento: o juízo duvida antes que resolva, o entendimento resolve primeiro que duvide; por isso este se engana pela facilidade com que decide, e aquele acerta pelo vagar com que pondera”. E não foi outro o caso de Martin Luther King Jr., o maior líder negro do século XX.
Nascido em 1929 na Georgia, estado que forneceu tímida fornada de músicos de jazz – lembro agora de dois ou três deles, como Fletcher Henderson, Hank Mobley e Mary Lou Williams – desde cedo convive com a corpulenta discriminação racial do sul norte-americano e, embora fosse filho da classe média, pode testemunhar a profunda segregação, violência e injustiça com que os sulistas negros eram tratados pelos brancos. Como muitos outros negros norte-americanos, King dedicou sua vida à justiça social, baseando sua ação na curiosa idéia da resistência não-violenta, teoria que conhece e simpatiza desde os tempos do colegial, quando lê Essay on Civil Desobedience, de Henry David Thoreau. Em seguida, já em 1951, King decide seguir os passos do pai, pastor da Igreja Batista, ingressando no seminário Crozer. Mais tarde, e já como pastor da Dexter Avenue Baptist Church, King revela-se um brilhante orador, dotado daquela liderança natural que caracteriza certas pessoas, destacando-se na condução do famoso boicote dos ônibus de Montgomery, em 1954. É nesse episódio que King põe à prova, pela primeira vez, sua teoria da não-violência, baseada em parte no que já havia aprendido com Thoreaus, mas também nas lições do teólogo Reinhold Niebuhr sobre o caráter ativo, e não passivo, da resistência pela não-violência, e, sobretudo, na satyagraha, filosofia desenvolvida por Mahatma Gandhi.
Os aspectos fundamentais da teoria elaborada por King são o amor, a compreensão e a benevolência. Para King, resistir de forma não-violenta não significa aceitar passivamente o mal e o ódio, mas confrontá-los com o amor. King não pretende atingir a justiça humilhando ou enganando o adversário, mas convencendo-o de que há um senso moral comum a todos os homens que se propõem a conviver em sociedade, independentemente de sua cor ou sua crença. E para lograr êxito, o adepto da não-violência deve abster-se não somente da violência física, como também e principalmente da violência psicológica. É preciso localizar naquele que nos humilha ou nos odeia a parcela de humanidade que todo ser humano possui, por mais distintos que sejam dos nossos seus valores ou ideais. Como dizia o mestre em seu Pilgrimage to Nonviolence, p. 390 (ver Nonviolence in America: A Documentary History. Ed. Staughton Lynd, Indianapolis: Bobbs Merrill, 1966): “a resistência deve ser dirigida ao mal, não às pessoas que o praticam”. E, embora nesse ponto particularmente eu não concorde com King - a História não depõem nesse diapasão, ele sempre disse que o universo está do lado da justiça. Daí porque, para ele, a não-violência não deve ser utilizada apenas como tática pontual de resistência, mas antes como filosofia linear de vida. Por suas idéias e força, King recebeu o Prêmio Nobel da Paz em 1964 e, quatro anos depois, foi assassinado. Em homenagem a King, deixamos a faixa Struttin’ About retirada do álbum Seven Minds, gravado em 1984 por seu conterrâneo Rufus Reid (na foto acima com o trompetista Woody Shaw). Com ele estão Jim McNelly (p) e Terri Lyne Carrington (d). Que os Dantas e os Queiroz estudem mais a Satyagraha e ponham em prática os ensinamentos de King.

14 comentários:

Paula Nadler disse...

Adorei Lester, bju!

Salsa disse...

Muito bom, Lester, muito bom. Seu texto, a cada dia que passa, fica melhor. Parabéns.

Anônimo disse...

O povão adora ver um banqueiro condenado e, muito melhor, preso. Incrível como os absurdos jurídicos cometidos durante a operação Satyagraha recebem apoio da população que, em sua maioria, ignora as garantias legais mínimas de um estado democrático de direito. Só mesmo numa ditadura um sujeito pode ser investigado e julgado pelo mesmo juiz e só mesmo numa ditadura um delegado de polícia pode agir como Deus na elaboração de provas contra um suspeito.

Que homens como Gilmar Mendes, presidente do STF, nos proteja de Lula e seus policiais e promotores.

Sergio disse...

Lester, phoda! Simplesmente, phoda.

Até um dado momento em que dizes:

"a resistência deve ser dirigida ao mal, não às pessoas que o praticam”. E, embora nesse ponto particularmente eu não concorde com King"

ficou a dúvida, haveria uma solução mais sensata?

"ele" (King) "sempre disse que o universo está do lado da justiça."

Inteligência universal. Essa é a chave.

Em tempo: No último Manhattan Connection, o ex-pele do Paulo Francis, provou sua verve ao responder sobre uma polêmica a respeito de Maquiavel, onde sustentaram (todos da mesa, numa edção anterior) que Maquiavel não foi o pai do absolutismo. "Então quem é o pai do absolutismo, Caio?", perguntou Lucas Mendes. De bate e pronto, Caio respondeu: "Ora, é óbivo que o pai do absolutismo é Deus.

John Lester disse...

Prezado Sérgio, bom vê-lo por aqui. Creio que não fui claro em meu texto: a parte em que não concordo com King é quando ele diz que o universo está do lado da justiça. Pelo pouco que já li de História, entendo que a justiça raramente diverge dos interesses da classe dominante, classe que poucas vezes se preocupou com o bem, mas tão somente com a realização de seus projetos de poder.

É aquela coisa: o que é justiça?

Dar a todos a mesma coisa?

Dar a cada um de acordo com sua posição social?

Dar a cada um de acordo com seus méritos?

Dar a cada um de acordo com suas necessidades?

A grande questão é estabelecer o que seja justiça e, a partir daí, aplicar o conceito a todos igualmente, não importando de que lado está o universo.

Isso tudo sem esquecer que toda decisão judicial proporciona o bem para uma das partes e o mal para a outra. Salvo algum acordo, quando possível.

Grande abraço, JL.

Anônimo disse...

Além de a Operação Satiagraha, oficialmente da Polícia Federal, empregar mais de 80 agentes da Agência Brasileira de Inteligência (Abin), reportagem do jornalista Expedito Filho, da revista Veja, revela que um dos funcionários a serviço da Abin foi flagrado por policiais militares no Rio. O tenente Antônio Leandro de Souza Júnior, que fazia parte da segurança do presidente da República, estava parado diante da casa do ex-sócio e atual lobista do ex-banqueiro Daniel Dantas, Humberto Braz, quando foi abordado por PMs.

As investigações sobre o que aconteceu neste dia podem complicar a situação do ministro Jorge Felix e do diretor da Abin, Paulo Lacerda. O presidente Lula determinou a Felix a exoneração definitiva do Lacerda. Para o presidente, o ex-diretor "mentiu demais".

Policial militar de São Paulo, em seus registros funcionais consta que Souza foi requisitado em 2005 pelo Gabinete de Segurança Institucional (GSI), no Palácio do Planalto, para integrar a equipe de segurança do presidente Lula. Em maio, o tenente foi flagrado por policiais da Delegacia Anti-Seqüestro do Rio de Janeiro em "atividade suspeita". Estava a bordo de um Astra prata de propriedade da Abin, estacionado em frente a um prédio.

Quando foi questionado sobre o que fazia ali, Souza teria exibido uma identidade funcional da Presidência da República e se identificado como "tenente Marcos". Seguindo a versão oficial divulgada pela Abin na ocasião, respondeu que estava em missão sigilosa de acompanhamento de "espiões russos".

A versão de Leandro Souza sobre o episódio mudou bastante. Em entrevista concedida na porta de sua casa à revista Veja, no último domingo, o tenente disse que, na época, seguia os passos de um empresário, mas que "não sabia quem era".

Ele confirma ter recebido a missão de seus superiores da Abin, mas nega que tenha se identificado como tenente Marcos e que tenha dito que vigiava a atividade de espiões russos. Leandro Souza conta que só soube posteriormente que seu alvo se chamava Humberto Braz. "Eu não sou louco de mentir, apresentar um documento falso, uma história falsa, e levar um tiro", afirmou à revista.

A declaração de Souza, que continua vinculado ao Gabinete de Segurança Institucional, constrange e cria enormes embaraços para o ministro Jorge Felix, do GSI, e o delegado Paulo Lacerda, diretor afastado da Abin. O tenente não poderia estar ali, dentro do Astra, vigiando russos, alemães ou ex-lobistas de banqueiros. Foi abordado por policiais que suspeitaram dele e acabou abrindo a brecha que escancarou toda a gama de abusos e ilegalidades da operação da qual ele participava, segundo ele próprio, sem saber do que se tratava.

A abordagem ao tenente Leandro no Rio de Janeiro foi um desastre especial para a Operação Satiagraha. Como parecia tratar-se de um segurança do Palácio do Planalto, Gilberto Carvalho, o mais próximo e influente assessor do presidente Lula, foi informado. Carvalho levou as informações que acabara de receber ao general Felix, que não mostrou surpresa e saiu-se com a versão dos "espiões russos".

Carvalho ouviu a história e a passou adiante. Uma das pessoas a quem ele contou essa versão, por telefone, foi o advogado Luiz Eduardo Greenhalgh, que, algum tempo atrás, fora contratado pelo ex-banqueiro. Como o advogado do ex-banqueiro estava sendo monitorado pelos policiais e pela Abin, a conversa foi interceptada.

Sem saber, portanto, o tenente Leandro havia levado a investigação para a ante-sala do presidente Lula no Palácio do Planalto. Carvalho se tornara mais um dos alvos da equipe de policiais e espiões da Abin. "Tudo o que eu fiz foi tentar ajudar um amigo. Se tivessem me dito que o episódio era parte de uma investigação policial, é óbvio que teria me silenciado", afirmou Carvalho.

Em depoimento à CPI dos Grampos, tanto o general quanto Lacerda revelaram que a tal missão de acompanhamento de espiões russos era uma "história de cobertura". "Foi uma história de cobertura porque a investigação era sigilosa", afirmou o ministro-chefe do GSI. No jargão dos arapongas, isso quer dizer que o general e seu delegado contaram uma mentira para preservar o segredo de uma operação. Chefes de serviços de inteligência que mentem para os assessores dos presidentes e para os próprios presidentes não são propriamente uma novidade, tampouco uma invenção brasileira. Os historiadores dos serviços secretos americano, CIA, e soviético, KGB, convergem em um ponto: eles mentem para os presidentes, que mentem para o público.

As investigações sobre a atuação ilegal dos espiões da Abin, segundo a revista Veja, revelaram que o comando das ações clandestinas estava sediado em Brasília, precisamente no gabinete do delegado Lacerda, diretor afastado após a descoberta de que seus comandados haviam grampeado ilegalmente os telefones do presidente do STF.

Na semana passada, a CPI dos Grampos ouviu um depoimento do agente Márcio Seltz, um dos oitenta espiões que participaram da operação secreta. Ele revelou que teve acesso a mensagens eletrônicas e a interceptações telefônicas oriundas das investigações da PF e que chegou, inclusive, a repassar o material a Lacerda.

Leia o diálogo entre o tenente Souza e a Veja

Qual era sua missão na Operação Satiagraha?

Eu fui lá render um colega que já estava de campana e acabei sendo pego pela polícia. Eu não sabia exatamente quem estava seguindo. As operações são compartimentadas. A pessoa recebe uma ordem, mas não sabe detalhes. Nesse caso, a ordem era seguir o carro do alvo.

De quem foi a ordem?

Eu recebi instruções do meu superior na superintendência da Abin em São Paulo.

O senhor chegou a ter contato com o delegado Protógenes Queiroz, da Polícia Federal?

Não, eu não sabia que a Polícia Federal estava nessa operação.

Quando foi abordado pela polícia do Rio, o senhor se identificou como tenente Marcos?

Eu não menti. Dei a carteira da Presidência da República e falei que trabalhava para a Abin. Eu não sou louco de mentir, apresentar um documento falso, uma história falsa, e levar um tiro.

O senhor fazia o que antes de atuar na Abin?

Fui do corpo de segurança do presidente Lula. Quando ele viajava para São Paulo, eu fazia a segurança dele. Você acha que vão me chamar para a CPI? Você vai publicar isso aí e vão me dar uma cadeia na Polícia Militar por eu ter participado da operação. Vou perder minha promoção. Se isso acontecer, eu vou te achar em Brasília. Não posso falar mais... Se você publicar, eu vou te achar.

O Gabinete de Segurança Institucional e a Abin se recusaram a comentar o caso.

Fonte: Consultor Jurídico ( http://www.conjur.com.br/static/text/72198,1 )

Anônimo disse...

Pois é, irônicamente,
os adeptos da não-violência, acabam tendo morte violenta:o próprio King e Mahatma Gandhi, foram assassinados...A impressão que tenho, é que o mal(violência, poder,ganância,vaidade extrema))sempre vence!
E quando um juiz declara que não é necessário respeitar a Constituição, mas fazer o que "êle" acha certo, mesmo que fira a Lei? Como fica? Ótima resenha, Mister Lester,é um prazer observar sua habilidade em desenvolver um assunto, que termina sempre em JAZZ!

Anônimo disse...

Entro no blog do Jazzseen para verificar as novidades do jazz, espairecer um pouco e me deparo com a "Operação Satyagraha". Aí eu não aguento, vou voltar imediatamente para minha civilização, no Planeta da terceira constelação de Orion. Feliz Natal a todos. Fui !!!!

Anônimo disse...

Ora, predador, mas tem Jazz sim, e do bom! E o texto é muito bom, como sempre, aliás, no Jazzseen

Marília Deleuz disse...

Concordo com o amigo Predador, acho que uma das boas coisas do Jazzseen é aquela alienação característica - um blog sempre dedicado exclusivamente ao jazz, ao vinho e aos livros finos com letras grandes. Política e sacanagem nós já temos demais em outros sites.

Sergio disse...

Fala, São Lester!

Anônimo disse...

Dentre os "Kings" do jazz que conheço por certo não está Martin Luther. Utilizar o sr. Martin Luther King para, por linhas transversas, abordar a famigerada operação satyagraha e daniel dantas(elemento de sua estirpe se escreve com letra minúscula) é uma coisa inominável. Vamos, por favor, comentar mais sobre jazz, vinhos e livros que é o principal objetivo do blog. Politicagem e sacanagem, como diz Marília, já temos de sobra.

Anônimo disse...

Acho, meu caro Lester, que se esqueceram de observar quanto seu texto é bom, não importa que fale de jazz, de política, de sacanagem ou dos escuros corredores do espírito humano.
Continue escrevendo. Precisamos ouvi-lo.

Anônimo disse...

Do "Naufrágio" q se abateu no ES,até Noé teve q abandonar a barca.Edú.