José Guilherme Merquior era um brilhante pensador liberal (para muitos, um reacionário pedante) - mais ou menos aquilo que o colunista da Veja Diogo Mainardi gostaria de ser. Era também um polemista de excelência, daqueles que fazem do debate de idéias seu leitmotiv: criticava Freud e Marx com propriedade, segundo os freudianos e marxistas, suas vítimas imediatas, que suavam para rebater sua argumentação vigorosa e carregada de erudição. Suavam e não me lembro de terem vencido o embate.
Houve outras vítimas, como a professora da USP Marilena Chauí, a quem acusou de plágio - e comprovou. Sobrou tempo também para chamar Caetano Veloso de subintelectual de miolo-mole, termo com o qual o compositor, mais tarde, concordou. Merquior escrevia como um evangelista, crendo em tudo o que produzia quase como um ato de fé, mas uma crença balizada na solidez racional de leituras apuradíssimas de autores europeus, dos renascentistas aos pós-modernos, fincando o pé na vasta seara iluminista. Leu muito, e em muitas línguas.
Lembro-me bem do primeiro contato. No primeiro - talvez no segundo - ano dos 80, folheando a revista Manchete, encontrei um trecho de um de seus artigos monumentais em que dizia, num trocadilho óbvio, que Freud era uma fraude. Havia, salvo engano, certo humor no texto, mas um humor contido porque, certamente, seu autor não desejava descambar para a superficialidade do riso. Levava-se a sério e parecia dizer a mim, leitor bissexto daquele tipo de artigo, que eu deveria encará-lo - perdoem-me o pleonasmo! - com austera seriedade. Algum tempo depois, chegou-me as mãos, comprado em um sebo em Niterói, De Anchieta a Euclides, seu clássico livro sobre a literatura feita no Brasil, e, mais tarde, uma compilação de seus artigos críticos sobre literatura e arte intitulado Crítica (1964-1989). Aí o mar se abriu. Estavam lá textos selecionados de seus livros Razão do Poema (1965), A Astúcia da Mímese (1972), Formalismo e Tradição Moderna (1974), O Estruturalismo dos Pobres e Outras Questões (1975), O Fantasma Romântico (1980), As Idéias e as Formas (1981), O Elixir do Apocalipse (1983), De Praga a Paris (1986) e outros ensaios, incluindo uma pérola intitulada Gênero e Estilo das Memórias Póstumas de Brás Cubas, no qual destrincha os diálogos que Machado travava com Luciano, Apuleio, Rabelais, Fontenelle e Leopardi.
E tudo isso numa linguagem translúcida, mas que exige do leitor a tal seriedade que mencionei. Exige também que, paradoxalmente à racionalidade, haja amor por aquilo que a literatura transmite e transforma, seja ela resumida num poema de Rainer Maria Rilke ou na narrativa de Robert Musil - duas de suas preferências declaradas e que acabaram por me influenciar: li O Homem sem Qualidades, do Musil, a partir de leituras de Merquior, o mesmo acontecendo com A Terra Desolada, de Eliot, cuja consciência histórica era, para ele, seu patrimônio maior, juntamente, claro, com a linguagem. Confesso que seus textos sobre política nunca me atraíram, já que, por preconceito - ou temor -, um estudante universitário como eu, marxista por conveniência, tinha outras prioridades, mesmo que parcialmente equivocadas.
Mas seus artigos em que a literatura era o tema foram devorados como quindins, em particular o citado A Astúcia da Mímese, em que Drummond, João Cabral e Rilke são analisados com precisão.
Houve outras vítimas, como a professora da USP Marilena Chauí, a quem acusou de plágio - e comprovou. Sobrou tempo também para chamar Caetano Veloso de subintelectual de miolo-mole, termo com o qual o compositor, mais tarde, concordou. Merquior escrevia como um evangelista, crendo em tudo o que produzia quase como um ato de fé, mas uma crença balizada na solidez racional de leituras apuradíssimas de autores europeus, dos renascentistas aos pós-modernos, fincando o pé na vasta seara iluminista. Leu muito, e em muitas línguas.
Lembro-me bem do primeiro contato. No primeiro - talvez no segundo - ano dos 80, folheando a revista Manchete, encontrei um trecho de um de seus artigos monumentais em que dizia, num trocadilho óbvio, que Freud era uma fraude. Havia, salvo engano, certo humor no texto, mas um humor contido porque, certamente, seu autor não desejava descambar para a superficialidade do riso. Levava-se a sério e parecia dizer a mim, leitor bissexto daquele tipo de artigo, que eu deveria encará-lo - perdoem-me o pleonasmo! - com austera seriedade. Algum tempo depois, chegou-me as mãos, comprado em um sebo em Niterói, De Anchieta a Euclides, seu clássico livro sobre a literatura feita no Brasil, e, mais tarde, uma compilação de seus artigos críticos sobre literatura e arte intitulado Crítica (1964-1989). Aí o mar se abriu. Estavam lá textos selecionados de seus livros Razão do Poema (1965), A Astúcia da Mímese (1972), Formalismo e Tradição Moderna (1974), O Estruturalismo dos Pobres e Outras Questões (1975), O Fantasma Romântico (1980), As Idéias e as Formas (1981), O Elixir do Apocalipse (1983), De Praga a Paris (1986) e outros ensaios, incluindo uma pérola intitulada Gênero e Estilo das Memórias Póstumas de Brás Cubas, no qual destrincha os diálogos que Machado travava com Luciano, Apuleio, Rabelais, Fontenelle e Leopardi.
E tudo isso numa linguagem translúcida, mas que exige do leitor a tal seriedade que mencionei. Exige também que, paradoxalmente à racionalidade, haja amor por aquilo que a literatura transmite e transforma, seja ela resumida num poema de Rainer Maria Rilke ou na narrativa de Robert Musil - duas de suas preferências declaradas e que acabaram por me influenciar: li O Homem sem Qualidades, do Musil, a partir de leituras de Merquior, o mesmo acontecendo com A Terra Desolada, de Eliot, cuja consciência histórica era, para ele, seu patrimônio maior, juntamente, claro, com a linguagem. Confesso que seus textos sobre política nunca me atraíram, já que, por preconceito - ou temor -, um estudante universitário como eu, marxista por conveniência, tinha outras prioridades, mesmo que parcialmente equivocadas.
Mas seus artigos em que a literatura era o tema foram devorados como quindins, em particular o citado A Astúcia da Mímese, em que Drummond, João Cabral e Rilke são analisados com precisão.
José Guilherme Merquior foi diplomata e esteve longe de ser uma unanimidade. Foi criticado e criticou. Foi atacado e atacou - sempre no âmbito racional, pisando o terreno arenoso da filosofia, da historiografia, da política, da arte. Morreu precocemente, em 1991, às vésperas do próprio cinqüentenário, deixando uma herança que o brasileiro insiste em não usufruir, talvez por desconhecimento.
Eu disse talvez, porque sempre mantenho a desconfiança de que não haja muito interesse em reconhecer nas palavras de Merquior nossa quase nulidade intelectual. Típico do brasileiro, que opta pela cegueira diante do espelho que lhe expõe as deformações.
Leia aqui Machado em Perspectiva, conferência pronunciada por JGM.
Leia aqui entrevista à revista Veja, intitulada Um Mestre da Polêmica
12 comentários:
A revista Manchete durante o comando de Justino Martins e seguindo às diretrizes de Alberto Dines - q lá esteve por curto período – teve algumas de suas páginas assinadas pelo embaixador Merquior , Oto Lara Resende e Otto Maria Carpeaux sem deixar de mostrar evidentemente a boazuda passista do carnaval na época da festa momesca.
Primeiro Seu Mr. Edú me sai com uma interpretação nada ortodoxa da expressão "tirar a cachorra do colo".
Depois me vem com essa "boazuda passista do carnaval".
Pelo que eu tô vendo, o senhor não deixa almoço prá janta, como se diz por estas bandas, né?
Quanto ao Musil, confesso que parei lá pela página cento e pouco do Homem sem qualidades (falta-me a austeridade necessária para encarar aquele denso catatau), mas O jovem Törless é maravilhoso (esse não tinha como não ir até o fim, né - livro fino, letras grandes, ótima história, só não bebia vinho nem ouvia jazz nessa época - aos 17/18 anos as minhas preocupações seram mais, digamos, orgânicas).
Quanto ao Merquir, é uma bela e justa homenagem. Sempre me achei um esquerdista-não dogmático (enfim, um social democrata anterior aos malsinados tucanos) cercado de trotskistas, maoístas, leninistas, stalinistas e até (pasmem!!) hoxistas (ah, a Albânia, o Farol da Humanidade - que eu saiba de lá só saiu o Ismail Kadaré). Por isso sempre tive uma certa facilidade para conviver com os (poucos) liberais com quem topava pela universidade - pelo menos em estética e em concepções acerca da cemocracia (invariavelmente adjetivada de "burguesa" pelos sagazes camaradas) tínhamos lá as nossas afinidades.
Retornando a Merquior, seus textos (os poucos que li, admito) sobre política nunca me desagradaram - concordava com ele em diversos pontos, sobretudo com as suas críticas a um certo tipo de esquerda obtusa tão comum nos meios universitários e políticos brasileiros.
Um grande intelectual, cuja morte deixou uma enorme lacuna no pensamento contemporâneo. Mainardi percisaria ser um sujeito decente, íntegro e honesto para poder ser comparado a Merquior, cujo apreço pelas idéias não permitia que fizesse ataques meramente pessoais. A célebre frase sobre Caetano diz tudo: é uma constatação, não um xingamento - tem muito mais a ver com a mania do adorado filho de Santo Amaro da Purificação de meter a sua malemolente colher em todos os assuntos do universo, incluindo aí a crise do Senado, as partículas quark e a importância da marcha à ré na vida do caranguejo. Ou não!
Um pensador arrojado e corajoso em expor suas idéias, típico homem de uma época em que o adjetivo polêmico era associado a outro tipo de gente que não Luciana Gimenez, Alexandre Frota e Romário.
Abraços a todos.
Errata:
É "eram" não "seram".
E é "democracia", não "cemocracia".
Por fim, é "precisaria" e não "percisaria".
Valeu.
Grijó, obrigado pela resenha que somente você poderia ter escrito sobre Merquior.
Bem, noves fora, gostava de jazz ou não Merquior?
Aguardamos informações de Mestre Edù sobre o caso, o mais bem informado Editor do Jazzseen.
Grande abraço, JL.
Caro Èrico, a boazuda passista do carnaval(maior indice anual de vendas da revista Manchete ) e outras figuras da festa momesca foram homenageadas num lindo livro pelo cartunista Lan publicado pela Funarte intitulado É hoje o dia.Continuo o mesmo incauto q deixava para depois às páginas centrais da revista Ele e Ela(uma criação tb do Justino Martins) para concentrar leitura nos perfis de jazz ou artigos escritos sobre o tema para a publicação por Roberto Mugiatti e José Domingos Raffaelli.Ainda continuo desconhecendo os dois assuntos referidos.
Mr. Lester,
no Brasil fazem muita falta pessoas que pensem com a propria cabeça e não tenham medo de externar seus pensamentos e debate-los com quem pensa diferente. Acho que Merquior era um deles,goste-se ou não dele,concorde-se ou não com o que escrevia. Eu confesso que não tenho a menor condição de ler o que ele escreveu por total falta de preparo e cultura.
Sou de uma familia de esquerda,minha avó era do Partido Comunista desde a decada de 20 (ou 30). Mas hoje em dia se me perguntarem sobre minha "inclinação ideologica"(seja la o que isso for)minha resposta é impublicavel num blog de respeito como o Jazzseen. Edú deve imaginar o que é essa resposta.
Recomendo o incrivel livro do grande Arthur Koestler "Darkness At Noon",imperdivel.
Abraço
anos acadêmicos oitentistas...fim ai-5,anistia,abertura...na política,só havia dois lado...
e a dita intelectualidade da época só enxergava dois lados...o dos gorilas e o dos que não eram gorilas...rs
o sr.merquior foi um neo-liberal,condição pouco compreendida naqueles idos de restabelecimento democrático e coisa e tal...nego achava que o líder sindical era o homi...rs
mas, tudo bem,
aqui não é exatamente um fórum de discussão política,mas de música.
durante minha convivência acadêmica,'80,fui condenado pelos meus pares, pois curtia jazz,bossa nova,erudita...música imperialista,conforme o centro acadêmico da faculdade...
imagem os senhores o embotamento que ali já se anunciava de nosso futuro intelectual brasileiro.
quase 30 anos depois,reencontro muitos dos colegas que hoje ocupam cargos estratégicos na publicidade(sic)e são jazzófilos...hahaha
tudo é moda...o sr.merquior não,assim como tantos outros seus contemporâneo...acredito que ele curtia jazz pacas...rs
amplexosonoros
Morrer aos 49 anos uma pessoa brilhante como Merquior é uma lástima, principalmente no nosso país...Ainda bem que ainda temos pessoas como Grijó, aquele que traz a "inteligência à flor da tela", como sensívelmente Mr.Lester definiu...Sorte de seus alunos e dos que visitam o Ipsis Litteris!
Eis minha surpresa, JL, nessas visitas hebdomadárias (deveriam, sim, ser diárias) ao Jazzseen - blog que citei, numa recente postagem sobre Monk; confira! -, ao deparar-me com uma postagem minha longínqua, de dois anos, creio eu. Gosto muito do Merquior crítico literário; menos (bem menos) do intelectual liberal que estraçalhou Marilena Chauí e que lia um livro por dia.
Só não entendi por que a questão sobre ele gostar ou não de jazz veio à superfície. É relevante? (Deve ser, já que este blog é jazzístico.) E ele gostava?
E agradeço as palavras da Internauta Véia e do Érico Cordeiro. Sempre encontro generosidade neste blog.
Abraços.
Querido amigo, somente você é capaz de fazer com que eu dite estas poucas linhas à Altamira, minha diletante digitadora. Com nariz quebrado e momentaneamente fanho, peço apenas que nos auxilie nas pesquisas propostas por Mestre Edù: Merquior gostava ou não de jazz?
Essa é nossa dolorida epopéia.
Adega lotada, esperando você!
JL.
Mr. Lester,
desejo uma pronta e total recuperação de seu nariz,afinal é um importante auxiliar em suas pesquisas de vinhos (e talvez de outras coisas). E curioso pergunto: como foi que o Sr. o quebrou ? Teria sido um tombo ou o enfrentamento fisico com algum adversario ? Por favor mande noticias.
Abraço
Prezado Lester,
Tudo bem contigo? Quem fala é o Leonardo do blog JazzMan!. O novo blog está quase pronto, restando apenas detalhes. Nós estamos criando uma página para divulgar os principais sites sobre jazz da web e queremos inserir o Jazzseen. Você pode me enviar uma imagem da marca do site de vocês com o tamanho de 200px × 150px (ou maior que eu modifico aqui), acompanhado de uma descrição do site? mande para o leoselm@gmail.com
Abs,
Leonardo.
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