10/10/2009

E ele nem disse adeus

Há quem professe fé e eu respeito. Só penso que tais deuses, idolatrados aos quatro cantos, devem ser, caso existam, irônicos, grandes artistas, geniais bufões, tão completamente onipotentes, oniscientes e onipresentes que nos tratam como público menor, servil, quase descartável, pacatos observadores do tempo que flui histórico: como considerar viáveis um ou mais deuses que nos levam poeta, mas poeta mesmo, poeta que sangrou seus versos, aos cinqüenta anos de idade, cheio de projetos, sonhos, fantasias e duplicatas a pagar – sim, os verdadeiros poetas administram mal os números abstratos das moedas e notas, estes números sem qualquer relação com a métrica dos alexandrinos clássicos. A cerca de quinze dias Miguel Marvilla havia convidado alguns amigos seletos, segundo sua estranha ótica de seletividade, para compor o hall de escritores a alavancar seu mais recente projeto: uma revista. O projeto foi enterrado no sábado, dia difícil para Lester Young, dia em que, segundo o músico, algo de errado sempre haveria de acontecer, o que mantinha o genial saxofonista longe das ruas e bares, trancafiado em seu quarto de hotel, na segurança trazida pelo absinto e pelo cânhamo. E Lester Young tinha razão: sábado foi o dia em que nos despedimos de Miguel, um dos mais sedutores manipuladores de palavras e frases que já conheci, e li. Com ele foram muitas partes de nós, amigos, admiradores, leitores, parentes, amantes e, por que não dizer, esquinas, pássaros, ondas, azaléias, tornozelos, fotografias, horizontes, recortes da vida, retratos perdidos e versos, muitos versos, muitos versos, muitos versos não escritos. A saudade será grande Miguel. E, ao contrário do que dizem alguns deuses, empresários e idólatras, restarão insubstituíveis o poeta e sua poesia. Porque hoje é sábado. Ao amigo deixo a faixa Egyptian Fantasy , retirada dos mangues profundos de New Orleans para aliviar nossa dor, sob os cuidados do pianista Allen Toussaint (p). O album é The Bright Mississipi, lançado em 2009 pela Nonesuch. Com ele estão Don Byron (cl), Nicholas Payton (t), Marc Ribot (g), David Piltch (b), Jay Bellerose (d), Brad Mehldau (p) e Joshua Redman (ts). A seguir, Miguel por ele mesmo:
.
"Poeta usado, safra 1959, ainda em razoável estado de conservação. Proprietário de quase nada, a não ser uma penca de cedês, devedês e livros, todos lidos, vistos, ouvidos, não necessariamente nessa ordem, e de uma alma ampla e arejada, com vista apenas para coisas boas. Mestre em História Antiga pela Ufes, por puro prazer. Autor de um bocado de livros de poesia: “Dédalo”, “Sonetos da despaixão”, “Tanto amar”, “Lição de labirinto”, por exemplo. Não se culpe por não conhecê-los: foram publicados quando vc ainda era criança — se bem que Shakespeare foi publicado bem antes e vc conhece... “Os mortos estão no living”, é meu único, até agora, livro de contos e foi adotado pela Ufes para os vestibulares de 2007-2009, razão por que estamos aqui, você e eu. Em 2007, publiquei “O Império Romano e o Reino dos Céus” — a criação da imagem sagrada do imperador em “De laudibus Constantini”, de Eusébio de Cesaréia (século IV d.C.), em que discuto a formação da “basileia” em termos cristãos (parece grego? É grego — o inglês do século IV). Para 2008, “Beleléu e adjacências” (romance), "Estranhos companheiros" (poesia) e “Zoo-ilógico”, poesia para crianças (inclusive as que já cresceram)."
.
Os fetos, as begônias

Os mortos vão bem, guardados na terra
Que os aquece e os mistérios lhes encerra.
— Paul Valéry
.
Não eram pó, ao pó não tornariam. Eram carne, sangue, sexo de seu sexo, mesmo assim, munidos que estavam de a-feições, divinos divididos filhos do falho útero de Deus. Eternally.
Foram recusados sete vezes e sete vezes sete seriam ainda expulsos do convívio com a Divindade, antes de apreenderem por experiência própria que não eram tantos, mas um, que se desdobrava, de forma que achou melhor conservá-los à parte uns dos outros para que não se reunissem de novo e não se multiplicassem, fazendo com que a noite desça sobre o mundo, e se rasgue o véu do tempo, e não se veja mais o dia.
.
O cheio acre a formaldeído, inundando o âmbito em que os deixava. Ficariam ali, no escuro, donos incontestes de seus quase gestos e de suas quase formas peculiares, transpirando seus desejos, ruminando suas limitações e seus ódios, mas cada qual à parte, patente em sua redoma de vidro e formol. Ele viria toda noite. Sabia acalantos vários e dispunha de notas suficientes para niná-los eternamente.
.
Eles não chorariam, tinha certeza, e não sentiriam fome, mas, até se sentissem, isso já estava previsto: comeriam os próprios estômagos, de maneira que o espaço que ocupavam não careceria jamais de amplidão, pois o que crescessem além do possível serviria para, amputado, alimentá-los. Eles concordariam.
.
A mulher não saberia de nada. Ela, além do mais, teria de compreender se soubesse. Mesmo porque, se fizessem tudo certo, não haveria pânico na vizinhança, nem explicações à polícia, nem jornalistas à porta. Nada poderia denunciar a existência dos fetos nos vidros de formol, porque suas raízes foram fixadas bem fundo. Os fetos não se incomodariam, certamente, de nunca mudarem de lugar. Melhor para eles, que permanecessem quietos nessa superfície escura do que se tivessem que disputar seu espaço na umidade do subsolo com as formigas e os escorpiões.
.
Pensando assim, ele cimentou a base dos vidros, para que vento algum os derrubasse (seria uma lástima ter embriões vagando pela casa, cobrando seu dasein, poderiam espantar as visitas) e se foi, fechando a porta, devagar, para não acordá-los, agora que descansavam.
.
E ele vinha, como prometera, todas as noites, por desencargo de consciência ou por amor. Até que, sem explicações, não veio mais. E todo movimento cessou.
.
Então, guiando-se por um raio de sol incrustado em algum lugar, eles se ergueram, todos juntos, romperam a entrada da vagina e irromperam no jardim, misturando-se, verdes, às begônias.
.
Miguel Marvilla (1959-2009)