26/10/2009

King of Swing - Parte II

Como não há bem ou mal que dure para sempre, o cancelamento do programa de rádio, em 1935, obrigou Benny a aceitar um longo roteiro de turnês para manter o grupo sobrevivente. Uma delas estabelecia passagem pela costa oeste americana, região que a intelectualidade do meio leste rotulava como “à espera da civilização”. Pela distância e a quantidade de acidentes geográficos em seu relevo natural. Sem conseguir alugar um ônibus para esse propósito, parte em três ou quatro automóveis alugados, lembrando os emigrantes que povoaram aquela região inóspita séculos antes. No caminho, atingem as menores cidades e encontram uma platéia indisposta à apreciar a intensidade e energia do swing - o ritmo que trazia novamente o país à trilha do otimismo. Aos berros tinham as apresentações interrompidas por promotores locais que indagavam “por que vocês não tocam valsas?”. Ao chegar em Los Angeles (maior centro da costa oeste dos EUA), ponto final da turnê, Goodman havia decidido encerrar as atividades do grupo. Uma multidão de milhares de jovens fãs, no entanto, o esperava, fazendo fila de quarteirão no Palomar Ballroom, em 21 de agosto 1935. Exigiam ouvir aquilo que a rádio tinha transmitido aos sábados à noite. Ao pisarem naquele palco, os músicos da banda foram recebidos aos urros e uma sucessão quase inesgotável de aplausos a cada entrada. Segundo a revista Time, Goodman, a partir daquela exata hora, independente da coroa, cetro ou casaca, tornava-se “The King of Swing”. Dois anos depois, em 1937, Benny Goodman, aos 28 anos de idade, embolsava 15 mil dólares semanais, tornando-se o primeiro músico de jazz a ficar milionário e um dos raros a permanecer nessa condição até o final de seus dias. Capaz, por capricho próprio, de aspirar, se quisesse, os melhores aromas que o dinheiro poderia comprar num tempo ainda em que centenas de profissionais qualificados lutavam com unhas e dentes para abandonar a moradia da caixa de papelão e as refeições da sopa paroquial. Fazia participação em filmes, gravava dezenas de discos e aparecia nas capas de revistas. Colocava milhares de pessoas em várias sessões semanais no Paramount Theather em Nova Iorque. Interrompendo a temporada somente para apresentar-se em outros locais por força de contrato. Auxiliava a impulsionar novamente a indústria fonográfica com a venda de quase 50 milhões de discos por ano de Swing. Tendo a aparente petulância, mesmo se borrando de medo, em integrar músicos brancos e negros de forma pública na banda. Introduzia ainda, em 1939, a guitarra amplificada no jazz para grandes platéias com o guitarrista negro Charlie Christian. Nunca antes, em nenhum momento anterior da história dos EUA, o jazz esteve tão associado à música popular americana. Nunca, na verdade, em nenhum momento anterior da história musical, o jazz, especificamente o swing, tornou-se, como ocorria naqueles pares de anos, a real música popular da América. Por interferência do empresário de divas e músicos eruditos, Sol Hurok, recebe proposta para apresentar-se no solene palco da música de concerto e da ópera em Nova Iorque – o Carnegie Hall. A primeira reação de Goodman diante da proposta foi de descrédito. Seu público majoritário, na época, era de jovens que entravam em êxtase ao vê-lo curvar o corpo solando na clarineta ou, nas garotas, preferencialmente, tinham alterado seu nível de estrogênio após os solos de bateria ou o balançar do topete de Gene Krupa – segunda estrela da banda. Após algum tempo de reflexão, acolheu a idéia. Segundo as más línguas, foi a única ocasião na vida em que não se importou o quanto iria receber por um trabalho. Músicos dos grupos de Count Basie e Duke Ellington, praticamente a nata, foram emprestados para esse fim, como: Johnny Hodges (as), Cootie Williams (t), Lester Young (ts), Buck Clayton (t), Harry Carney (bs) e o próprio Basie ao piano. Duke, porém, declinou o convite para juntar-se à patota. O projeto do show estabelecia demonstrar ao público fiel à musica de concerto e canto lírico uma pequena panorâmica dos vinte primeiros anos da história do jazz, com homenagens ao Dixieland, Bix Beiderbecke, Armstrong e Ellington (motivo do empréstimo de alguns de seus músicos e razão do convite) e certas jam sessions “devidamente ensaiadas”. Além do repertorio tradicional da banda de Goodman, com arranjos de Fletcher Henderson, Jimmy Mundy e Edgar Sampson. Ao ser consultado pela produção do espetáculo sobre quantos minutos precisava para ajustar o palco ao conforto dos músicos, respondeu: “sei lá, o mesmo que Toscanini” (regente da Filarmônica de Nova Iorque). Em 16 de janeiro de 1938, Goodman e vinte e cinco músicos aguardavam no palco, com cortinas fechadas, a ocupação de todos os lugares da platéia. A venda de ingressos tinha sido precedida de grande sucesso com lugares adicionais colocados nos corredores, degraus laterais e até mesmo nas margens do palco. Observando pela fresta da cortina, o trompetista Harry James proclamava : “me sinto uma prostituta na igreja”. Ao abrir das cortinas, munido da sua clarineta e um impecável fraque, Goodman dava os primeiros sinais de entrada num repertório que pecava pela ausência de ousadia. As primeiras palmas foram praticamente protocolares de vários fãs que haviam se infiltrado na platéia de forma pagante. O espetáculo transitava pelo caminho da mesmice até que um insubordinado Gene Krupa inicia quase uma convocação tribal percussiva – tamanha energia e força com que surrava os tambores com suas baquetas. Era a senha para a orquestra relaxar e fazer o que sabia: divertir seu público, no melhor sentido, colocando as pessoas para dançar. Observando as imagens daquela noite temos a visão do palco tomado pelo maior agrupamento de talentos da história do jazz reunido num mesmo evento, segundo o historiador do Jazz, James Lincoln Collier. Uma curiosa coreografia, num desorganizado balé, composto pelo deslizar no chão de diversos tipos de pés calçados, ritmados por insensatos joelhos do público que, da cintura pra cima, lutava intimamente para manter a serenidade se abundando ao seu assento. Rápido, algumas respeitáveis senhoras largavam suas estolas na poltrona e de pé balançavam o quadril sem medo do efeito do reumatismo no dia seguinte. Benny Goodman observava altivo toda essa catarse. Milhares de fatos talvez tenham habitado suas lembranças naquele exato instante. Teria, enfim, melhores lembranças para sepultar as antigas de sua passagem pelos fétidos guetos de Chicago na infância. Um solitário microfone apenas, instalado um pouco abaixo do teto, direcionado ao centro da orquestra, enviou o som emitido para os estúdios da CBS onde foi armazenado numa série de acetatos. Duas cópias foram retiradas. Uma enviada para a biblioteca do Congresso Americano. O outro acetato, considerado perdido, foi descoberto apenas em 1950 na casa de Goodman por sua filha num canto de armário. O conjunto dos dois formou a íntegra do disco que registrou a totalidade do concerto e que tornou-se por seguidas décadas o álbum de jazz mais vendido do século XX. Goodman, de músico, líder de banda, passava a ser celebridade. Com vida registrada num filme, ruim e inverídico, chamado “The Benny Goodman Story” em 1955 com sua participação especial e de alguns de seus mais conhecidos colaboradores. Com o envolvimento dos EUA na Segunda Guerra, a partir de 1942, o grupo foi submetido comercialmente às sanções da redução das cotas de combustível para uso civil: o que limitava a extensão das turnês. E o prejuízo da convocação a rodo dos músicos para alistamento nos serviços de entretenimento militar nas frentes de batalha. Cumpria o itinerário de seus espetáculos escorando-se na maior parte em baladas vocais para prazer do público conservador e desprazer daqueles que o conheceram pelo ritmo do swing. Realizado financeiramente, Goodman voltava seu interesse para aulas de música erudita com o clarinetista Reginald Kell e pelos compositores eruditos como Bela Bartok e Aaron Copland. Tornava-se uma espécie de grife musical nos anos cinquenta e figurava, ao lado de outros músicos, em espetáculos na forma de convidado. O empresário de jazz, Norman Granz, idealizou em 1953 uma turnê reunindo Louis Armstrong e seus All Stars com Benny Goodman e alguns músicos disponíveis no meio como Charlie Shavers, Zigg Elman (t), Georgie Auld (ts), Gene Krupa (d), Teddy Wilson (p) e a cantora Helen Ward, entre outros. A excursão passaria por algumas cidades importantes e se encerraria com dois espetáculos épicos no Carnegie Hall. A princípio Benny manifestou entusiasmo pela idéia movido pelo borderô de vendas dos discos do Concerto de 1938 e na tentativa de resgatar o swing atirado quase no limbo. Louis Armstrong começava a sofrer problemas na embocadura do trompete, conseqüência da retirada das peles ressecadas em seus lábios, de forma irresponsável, por encardidas giletes. Fazia, numa avaliação severa crítica, um espetáculo de vaudeville de grande sucesso e carisma. Tocando pequenas frases no instrumento e apoiando-se, na maior parte, em interpretações com a característica voz rouca. O final do espetáculo contemplaria essas duas lendas tocando juntos alguns temas conhecidos de cada. Porém, no desenvolvimento da produção, enquanto Armstrong cumpria disciplinadamente seu cronograma de ensaios, Goodman aparentava maior dependência ao álcool. Dificultando de sua parte - pelo perfeccionismo e teimosia - a evolução do novo grupo em temas que dominava “acorrentado” décadas antes. Um colapso de saúde foi alegado para sua retirada da turnê. Com Granz, inclusive, ameaçando processá-lo por quebra de contrato. A rotina de apresentações não o empolgava tanto e nem fez sucesso o programa de TV em que tentaram colocá-lo chamado Swing Into Spring. Em 1957, o Departamento de Estado o leva ao Leste Europeu onde milhões de socialistas o tinham como o inventor do Jazz, perante a audição frequente do serviço internacional da Voz da América. Todavia, Urbie Green (tb) era efetivamente o líder do grupo na turnê. Em 1978 comemora os 40 anos do Concerto no Carnegie Hall, no mesmo local. Recebendo diversas comendas e homenagens nos seguidos anos. Mantém uma relação de proximidade com a Universidade de Yale, instituição que recebe a doação de seu acervo após sua morte por ataque cardíaco em 13 de julho de 1986. Havia se tornado uma figura semi-reclusa no final. Um jornalista interessado em saber sua opinião a respeito de Gene Krupa, considerado seu amigo mais próximo, consegue levar ao telefone sua secretária na ante-sala do escritório na universidade. Ao prosseguir a ligação e para quebrar o gelo afirma alegremente: “ufa! pensei que fosse mais fácil falar com Deus”. A resposta seca foi “telefone antes ao seu destino original”. Para os visitantes e colocando nossa homenagem à passagem dos 100 anos do maior clarinetista do jazz, deixo a faixa Life Goes to a Party , de Benny Goodman e Gene Krupa, retirada da histórica noite do Concerto do Carnegie Hall em 16 de janeiro de 1938 com B Goodman (cl), Harry James, Ziggy Ellman, Chris Griffin (t), Vernon Brown, Red Ballard (tb), Hymie Schertzer (as), George Koenig, Babe Russin, Artur Rollini (ts), Allan Reuss (g), Jess Stacy (p), Harry Goodman (b), Gene Krupa (d).

19 comentários:

John Lester disse...

Prezado Mestre, o que mais dizer sobre o Rei do Swing?

Grande abraço, JL.

Salsa disse...

Parabéns pelo bom trabalho, Edú. Bacana!

pituco disse...

pôxa,
o carnegie hall é sinônimo de êxito...tanto artístico qto financeiro, não é isso?

bacanudo navegar nesses blogs e absorver tanta informação em textos irretocáveis...obrigadão

abraçsons pacíficos

Érico Cordeiro disse...

Mestre Edú,
A segunda parte é tão deliciosa e informativa quanto a primeira.
Grande Benny - um dos pilares do jazz de todas as épocas!!!
Abração!

edú disse...

Queridos amigos,

contrariamente às autobiografias de bbbs e outras personalidades de mesma origem e laia que querem eternizar seus 5 minutos de fama com twitters, blogs e orkuts, a historia pessoal de Benny Goodman é entrosada ao período de modernização industrial dos EUA. Reordenação das classes sociais e construção da nova relação do mercado de trabalho.Transformando e renovando hábitos, costumes culturais numa sucessão avassaladora para um curto espaço de tempo.Provocando uma revolução interna – num período pré – Segunda Guerra Mundial - à custa praticamente de nenhum derramamento de sangue.Segundo a busca de uma reminiscência, o som de Goodman foi certamente o primeiro jazz que ouvi na minha infância.Produto de um long play de vinil acomodado na bagagem de meus avós numa viagem de retorno de NY e colocado para circular na agulha da vitrola no apartamento da família.Como na época deveria ,provavelmente, ter uns quatro anos de idade, divertia-me de forma entusiasmada mais com os carrinhos “matchbox” que ganhava como mimo.

Paula Nadler disse...

Tudo muito lindo. Beijos!

APÓSTOLO disse...

Prezado EDÚ:

Excelente resenha que, com certeza, agradaria em muito e um finado cultor da "ARTE POPULAR MAIOR", a "música dos músicos", o JAZZ.
Refiro-me ao infelizmente já falecido MAXWELL JOHNSTONE, inglês de fino senso de humor, que sobre ser um senhor conhecedor do assunto, era antes de tudo um profundo amante da música de BENNY GOODMAN, do qual possuia fantástico acervo gravado.
Parabéns ! ! !
Guardo as duas partes para meus arquivos, como documento de consulta.

edú disse...

Sou imerecedor dessa honra, prezado professor e considerado amigo Apóstolo.Já havia lido a respeito de Mr.Johnstone nas histórias do nosso venerado Mestre LLulla.Um dos melhores benefícios da internete,senão o melhor, é aproximar essas referências num pressionar de clique - a despeito da distância geográfica.Mesmo residindo em SP, o Lester, em Vila Velha é o Èrico,em SL, tenho a impressão, por seguidas vezes, que estamos os três dividindo balcão na mesma padaria da esquina.

Augusto Carlos disse...

Bom mesmo, nesses botecos de esquina, é aquele sanduba de pernil brilhante e já meio esverdeado pela ação das saborosas bactérias. E quem resiste?

Parabéns ao Jazzseen pela manutenção praticamente ininterrupta de qualidade e bom gosto.

figbatera disse...

Muito bem, Edu, uma super resenha, com o nível de interesse, importância e qualidade de informações à altura deste indispensável blog capitaneado pelo Mestre John Lester.
Agradeço em meu nome e dos demais leitores (alunos e mestres) deste espaço por mais esta magnífica aula sobre uma das paixões de nossas vidas. Parabéns!

edú disse...

Seu Olney,

em nosso frequente cafezinho o balcão se prolonga até o limite da grande Cataguazes.Meu sanduíche de pernil, naturalmente, é kosher.Aquela manta esverdeada – alegada presença de bactérias – sempre considerei molho ao pesto.

Danilo Toli disse...

adorei muito tudo isso, ah! e também adoro sanduiche!

edú disse...

A intervenção do nosso Toli, me deu a deixa para reparar um grave esquecimento : registrar q nosso maior band líder,Severino Araújo, hoje com 92 anos e tinindo - tem como maior ídolo Benny Goodman.

APÓSTOLO disse...

Prezado EDÚ:

Muito, muito bom saber que naquela padaria da esquina, como sempre servindo com qualidade, o grande SEVERINO ARAUJO e sua soberba TABAJARA são lembrados.
Coisas que o bom gosto nos serviu durante tantos e tantos anos...

Cinéfilo disse...

JL, caro amigo, já ouviste falar em Strayhorn?

Está lá, no canto direito do Ipsis.

John Lester disse...

Bem, apesar de não trocar meia von Teese por dois Strayhorn, vou tentar desligar o video e ler sua matéria.

Por outro lado, devo dizer também que não troco dois potes de caviar solitário por duas médias em sua companhia. Estamos, eu e Mrs. Lester, aguardando você por aqui.

Grande abraço, JL.

Abílio disse...

Fantástica aventura essa, a vida de Goodman!

Frederico Bravante disse...

Sem dúvida uma das melhores resenhas de 2009. Parabéns Edu.

Carioca da Vila disse...

Mesmo sem ter lido, sei que a resenha está maravilhosa!
Assim que chegar em casa, volto ao Jazzseen para aproveitar tudo que perdi na minha ausência...no momento, teclo numa lanhouse aqui na Constante Ramos...