Com Reinaldo Santos Neves eu aprendi uma coisa: nada mais indispensável, na literatura, do que a ironia. Em Sueli, publicado em 1989, há a seguinte passagem: “A ironia é a santa padroeira deste romance”. É ela que permite ao escritor cruzar sua experiência pessoal com a linguagem do texto, colocando em questão inclusive o que se narra e como se narra. E ainda por cima, é a ironia quem estabelece uma relação de cumplicidade entre leitor e personagem, ainda que este último seja, tal qual Kitty, aquela patricinha que tira foto da baladinha do “finde” só para postar no fotolog e ser comentada entre a galera da “facul” na segunda-feira.
Essa ironia faz com que a leitura do recém-lançado romance Kitty aos 22: Divertimento seja uma experiência bastante peculiar. A protagonista bem que poderia despertar a extrema repulsa dos leitores mais jovens: digamos que Maria Catarina, a Kitty, seja a garotinha fútil que todo indie adoraria esganar. Faz do blog um diarinho adolescente, e vive mergulhada na “sinfonia de estrobos” proporcionada pelas cybershots de bolso a toda hora convocadas pra registrar sorrisos incansáveis pro fotolog. Ganhou de Daddy um Audi A-3 vermelho, só chama a mãe de “Mummy”, de-tes-ta trocadilhos entre seu nome e o da Hello Kitty, é fã tanto do Audioslave quanto do Lasgo, e é claro que suas amigas se chamam Lu, Déb, Pri...
Uma personagem dessas, nas mãos de um típico escritor da geração 90-00, facilmente seria reduzida a um mero estereótipo, pronta para se dar mal na primeira esquina em que a trama percorresse. Nas mãos de Reinaldo (que agora em dezembro completa 60 anos de idade), a estória é outra: ele mergulha nesse universo pop, e se aproveita exatamente do caráter efêmero e mutável desses elementos para construir um enredo sólido, repleto de suspense, subvertendo cada citação em favor das reviravoltas narrativas. Em lugar de rechear o texto com referências à cultura pop, coisa da qual a maioria dos jovens autores faz uso a fim de declarar filiação a esta ou aquela tribo, Reinaldo as utiliza para descrever minuciosamente o universo do personagem, aumentando inclusive seu grau de estranhamento em relação ao mundo ao redor. Isso, meus caros, é uma bela aula de ironia.
Um dos mais importantes escritores em atividade no Espírito Santo, Reinaldo confessa-se fortemente influenciado pelo tom de distanciamento presente na obra do britânico Richard Hughes, que nunca perdia a fleuma, mesmo quando narrava os episódios mais trágicos. Em seus textos, Reinaldo acrescenta ainda um alto grau de experimentação, com fartas doses de metalinguagem. Até porque um de seus exercícios prediletos é a auto-ironia, ao centrar a narração muitas vezes em primeira pessoa, confundindo o leitor acerca da veracidade do que está sendo narrado.
Sueli, que durante anos fez parte da lista do vestibular da Ufes (que há duas décadas inclui obras locais na prova de Literatura Brasileira), e por isso mesmo bastante presente no imaginário de toda uma geração, é um exemplo disso. Com o subtítulo Romance confesso, o livro parte de um episódio autobiográfico para narrar uma história de amor que nunca deslancha, centrada na paixão platônica do narrador-personagem por uma repórter de TV. Aqui, usa-se do artifício de trocar uma letra do nome (Reynaldo, com “y”; da mesma forma que a grafia da Sueli “personagem” também difere da jornalista original) para nos lembrar que alguns episódios são ficcionais, mas as incessantes referências a pessoas, eventos e lugares reais em Vitória confundem o espectador o tempo todo.
Outro típico uso da auto-referenciação está nas crônicas publicadas na década de 90 (originalmente no site Gazeta On Line e atualmente disponíveis no Estação Capixaba), dentro da série Dois graus a leste, três graus a oeste. Aqui, as antológicas reuniões semanais do Clube das Terças-feiras, confraria capixaba de jazzófilos de carteirinha da qual Reinaldo costuma participar há uns 12, 13 anos, servem de pano de fundo para as digressões do protagonista, o fictício Garibaldi (no fundo, uma mistura dos pontos de vista puristas de vários dos membros do Clube), célebre por seu profundo ódio xiita a um certo mito do jazz, retratado nos impagáveis dois atos de “A aboborificação de Miles Davis”.
Reinaldo costuma dizer: “Eu não tenho escrita; tenho reescrita”. E cita o final de Sueli como exemplo desse casamento exaustivo entre autor e texto, esse processo de constante reelaboração, quase obsessiva:
“Posso até, de vez em quando, vir a lembrar-me com certa nostalgia dos dias em que estive a serviço deste romance, ajudando-o, como autor, a se escrever (...) Mas agora chega: o romance extraiu de mim tudo que pôde: estou seco e estéril. Assim, já que estou acabado para o romance, para mim o romance está acabado também. Nem mais uma só palavra seja aqui dita por escrito, a não ser — imprima-se.”
Nascido em 1946, Reinaldo é herdeiro de uma linhagem nobre das letras capixabas: o pai, Guilherme Santos Neves, foi um dos principais pesquisadores do folclore espírito-santense, e co-autor (sob pseudônimo) do livro de poesia erótico-satírica Cantáridas (escrito na década de 30 e só publicado nos anos 80); o irmão, Luiz Guilherme, também é ficcionista e historiador. A estréia na literatura foi com o romance Reino dos medas (1971), que lhe valeu na época uma menção honrosa do extinto Instituto Nacional do Livro, embora hoje em dia o autor considere este livro uma obra menor, apesar do forte trabalho estilístico presente no texto. Num depoimento recente, Reinaldo declarou: “Este é o único dos meus livros em que a ironia está ausente”.
Seguiram-se outros quatro romances: A crônica de Malemort (1977), todo ambientado na Idade Média; As mãos no fogo (1983), relato das aventuras sexuais de um jovem de 27 anos na Vitória do final dos anos 70; e os citados Sueli: Romance confesso (1989) e Kitty aos 22: Divertimento (2006). Completam sua obra publicada a coletânea de contos Má notícia para o pai da criança (1995), os poemas de Muito soneto por nada (1998), a novela A confissão (1999) e a série de crônicas on line Dois graus a leste, três graus a oeste (1997-99).
Reinaldo também é um importante fomentador do panorama literário capixaba, tendo estado à frente da Coleção Letras Capixabas, da FCAA/ Ufes, que, com seus 40 títulos, lançou toda uma geração de autores nos anos 80, considerada por muitos uma espécie de “época de ouro” da literatura no Espírito Santo. Desde Sueli, as obras de Reinaldo têm sido publicadas por editoras locais, restringindo em muito o alcance desses trabalhos no circuito nacional. Essa situação tende a se reverter muito em breve, com a publicação do romance A longa história pela Editora Bertrand Brasil, com a qual o autor assinou contrato recentemente.
Enquanto isso não acontece, Kitty aos 22, seu trabalho mais recente, tem causado um certo rebuliço entre a juventude local, uma vez que o livro tem sido bastante indicado por professores do ensino médio. As reações ao livro vão desde apaixonadas defesas até declarações de profundo repúdio à garota. Nessas horas, eu cruzo meus dedos e fico torcendo pro livro ser indicado para os próximos vestibulares da Federal. Quem sabe ele não faz a cabeça de mais uma geração?
11/04/2007
Escrita como artesanato da ironia
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Faz tempo penso em escrever uma resenha sobre o amigo Reinaldo, presidente vitalício do aclamado Clube das Terças. Sendo Reinaldo escritor consagrado, a responsabilidade sobre meus dedos aumenta e, aliada à falta de tempo e inspiração, vai ficando postergada tão merecida resenha. Mas, não tem essa coisa do destino? Navegando preguiçosamente pela net eis que brota na tela Reinaldo, sob os cuidados do habilidoso discurso de Erly Vieira Jr, um jovem que promete ampliar o alfabeto capixaba. A coisa está publicada no interessante site Overmundo, de onde retiro o texto a seguir, bem como as alegres fotografias do ínclito escriba. Ao final, deixo para o amigo a irônica faixa I mean You, de Thelonious Monk, interpretada pelo impagável Monk's Music Trio [Si Perkoff (p), Max Perkoff (tb) e Chuck Berenstein (d)]. Haja ironia, não é?
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10 comentários:
Reinaldo e Monk, tudo a ver.
O Espírito Santo merece.....o mundo também.
Muito boa a sua idéia mr.Lester em mostrar uma outra faceta do nosso Pres. Tomando emprestado a frase de Acácia, acrescento: Reinaldo, literatura, jazz, tudo a ver.
haja saco hein reinaldo!
Não conhecia esse trio. Muito bom.
Caramba,carambola, esse cara é a cara do Monk, só falta o chapéu. Na outra foto, debruçado sobre o teclado, ele parece estar dando um acorde bem dissonante.Só falta mesmo o chapéu para ser a reencarnação do Monk. Se ele escreve como o Monk tocava, vcs estão bem servidos de presidente. Presenteiem-lhe um chapéu.
Esse Cretino tem um certa razão quanto à semelhança do presidente barbudo com Monk, dado ao seu comportamento introspecivo e socialmente enigmático mas que para os que tem o privilégio de ter acesso ao seu convívio, surpreende-se pelo seu espírito aberto, gentil e carismático. Maior razão têm ainda John Lester em expô-lo com méritos neste blog e os comentários de Erly que além de grande conhecedor de literatura é um excelente conhecedor de música.Jazzseen cumpre com maestria seu propósito de divulgar a boa música, os bons livros e os incríveis personagens que constroem nosso almejado cotidiano de encantamento já tão assoreado pela imbecilidade de políticos e de outras bestas humanas.
Não sou Romário nem nada, quase nenhum gol fiz na vida, mas amanheci com cãibra na panturrilha direita. Deve ser coisa de sexta-feira 13. Lendo agora os justos comentários de John Lester e Erly sobre The Pres esqueci dos espasmos.
Mas não se deve esquecer do espírito generoso do Reinaldo, que combina muito bem com sua proverbial timidez.
The Pres é dez!
haja saco hein reinaldo!
Sem computador desde quarta passada, só hoje, em computador alheio, posso ter o grande prazer de me encabular até a medula com tanta "homenagem".
Sei que a amizade está por trás de tudo isso, mas, realmente, faço minhas as palavras de Abilio.
E nem posso ouvir o trio monkiano porque este computador alheio não tem recursos para tanto.
Valeu, André, internauta por excelência: está na Web, André descobre.
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