Todos sabem que maio é o mês das mães e o das noivas. Contudo, muitos esquecem que maio é também o mês das flores, principalmente quando você passa pelas montanhas mineiras, onde a lua cheia de maio é famosa por misturar-se ao perfume das pétalas. Foi numa dessas noites enluaradas que Augusto dos Anjos rabiscou um de seus poemas mais delicados e foi também em maio que o Jazzseen nasceu. Diante de tudo isso, devo redimir minha postura em relação às cantoras de jazz, essas pobres esquecidas no mundo machista dos trompetes e saxofones. Já disse mais de uma vez em outras resenhas que a voz costuma me distrair e, em alguns casos mais graves, retirar totalmente o foco do coletivo, roubando totalmente a cena. Contudo, algumas cantoras sabem estar ali sem fazer muito alarde, sabem conduzir a coisa sem muitos afrescos e serpenteios. Minha cantora predileta de jazz é aquela que mais amava Lester Young – eles tinham uma espécie de comunhão musical poucas vezes vista (ouvida) no jazz: Billie Holiday, a menina que sempre pendurava uma gardênia branca nos cabelos negros. Muitos devem se perguntar curiosos: como uma pessoa sem evidentes qualidades vocais, com uma voz ácida e quase sempre com acentuações metálicas desagradáveis podia ter uma voz tão encantadora e tão sedutora?
Não olhem para mim, eu também não sei dizer como Lady Day fazia aquilo. Com seu timbre frio e seu registro limitado, Billie ainda hoje é capaz de me embalar nos mais aconchegantes sonhos, nos sonhos mais reconfortantes que já experimentei ouvindo música cantada. Proprietária de um ouvido privilegiado, Billie resolveu utilizar a voz como um instrumento e, para compensar certas restrições da voz, incorporou uma sensualidade tão poderosa em suas interpretações que as platéias se derretiam diante dela. Sua dicção, seu fraseado, seu vibrato controlado, sua amplificação incerta de notas suspensas, suas síncopes requintadas, tudo isso demonstrava que Billie, apesar de nunca ter estudado música – ela nunca aprendeu a ler uma partitura – era uma instrumentista da mais alta qualidade técnica, capaz de dialogar de igual para igual com os saxofones, os trompetes e os pianos de seus acompanhantes.
Mais tarde, envelhecida aos 40 anos pelo álcool e pela heroína, sua voz já era um fiapo rouco e lancinante, onde restavam ainda mais claros os sofrimentos de uma menina negra pobre, violentada, prostituída, presa e humilhada pelo racismo dos dias. Em pleno pesadelo e decadência, Billie grava com grande orquestra, pouco antes de morrer, um dos álbuns mais polêmicos do jazz: Lady In Satin, considerado por alguns críticos um disco menor e, por outros, inclusive pela própria Billie, um de seus melhores álbuns. Eu considero esse um dos melhores trabalhos de Billie, principalmente porque contrasta de forma absurdamente cruel o som belíssimo de sua voz desgraçada pela vida com o som limpo e claro dos instrumentos bem afinados da orquestra de Ray Ellis, com suas bochechas firmes e rosadas em contraponto com o corpo desfigurado de Billie. Mas foi assim, com sua imensa e original arte que Billie saiu dos prostíbulos e cabarés, sendo descoberta por John Hammond, um produtor musical apaixonado pelo jazz, que conseguiu gravar seu primeiro álbum, com Benny Goodman.
O sucesso veio rápido, com gravações com Teddy Wilson, Count Basie (onde conheceu Lester Young, o Pres do sax tenor, que lhe apelidou Lady Day) e Artie Shaw, um dos primeiros líderes de orquestra branca a utilizar uma cantora negra, coisa muito corajosa para aqueles anos alvos de 1930 nos EUA. Antes de ser derrotada pela realidade, Billie chegou a ter sua própria orquestra e gravou cerca de 280 canções inesquecíveis, das quais é praticamente impossível selecionar uma ou duas para os amigos navegantes. Mas estamos aqui para isso, não é? Separei algumas faixas gravadas entre 1937 e 1944 para a Columbia, sempre com Lester Young no tenor. São elas: This Year's Kisses, Yours And Mine, He's Funny That Way, Easy Living e I Must Have That Man. A senha de acesso aos arquivos é jazzseen. Boa audição!
Não olhem para mim, eu também não sei dizer como Lady Day fazia aquilo. Com seu timbre frio e seu registro limitado, Billie ainda hoje é capaz de me embalar nos mais aconchegantes sonhos, nos sonhos mais reconfortantes que já experimentei ouvindo música cantada. Proprietária de um ouvido privilegiado, Billie resolveu utilizar a voz como um instrumento e, para compensar certas restrições da voz, incorporou uma sensualidade tão poderosa em suas interpretações que as platéias se derretiam diante dela. Sua dicção, seu fraseado, seu vibrato controlado, sua amplificação incerta de notas suspensas, suas síncopes requintadas, tudo isso demonstrava que Billie, apesar de nunca ter estudado música – ela nunca aprendeu a ler uma partitura – era uma instrumentista da mais alta qualidade técnica, capaz de dialogar de igual para igual com os saxofones, os trompetes e os pianos de seus acompanhantes.
Mais tarde, envelhecida aos 40 anos pelo álcool e pela heroína, sua voz já era um fiapo rouco e lancinante, onde restavam ainda mais claros os sofrimentos de uma menina negra pobre, violentada, prostituída, presa e humilhada pelo racismo dos dias. Em pleno pesadelo e decadência, Billie grava com grande orquestra, pouco antes de morrer, um dos álbuns mais polêmicos do jazz: Lady In Satin, considerado por alguns críticos um disco menor e, por outros, inclusive pela própria Billie, um de seus melhores álbuns. Eu considero esse um dos melhores trabalhos de Billie, principalmente porque contrasta de forma absurdamente cruel o som belíssimo de sua voz desgraçada pela vida com o som limpo e claro dos instrumentos bem afinados da orquestra de Ray Ellis, com suas bochechas firmes e rosadas em contraponto com o corpo desfigurado de Billie. Mas foi assim, com sua imensa e original arte que Billie saiu dos prostíbulos e cabarés, sendo descoberta por John Hammond, um produtor musical apaixonado pelo jazz, que conseguiu gravar seu primeiro álbum, com Benny Goodman.
O sucesso veio rápido, com gravações com Teddy Wilson, Count Basie (onde conheceu Lester Young, o Pres do sax tenor, que lhe apelidou Lady Day) e Artie Shaw, um dos primeiros líderes de orquestra branca a utilizar uma cantora negra, coisa muito corajosa para aqueles anos alvos de 1930 nos EUA. Antes de ser derrotada pela realidade, Billie chegou a ter sua própria orquestra e gravou cerca de 280 canções inesquecíveis, das quais é praticamente impossível selecionar uma ou duas para os amigos navegantes. Mas estamos aqui para isso, não é? Separei algumas faixas gravadas entre 1937 e 1944 para a Columbia, sempre com Lester Young no tenor. São elas: This Year's Kisses, Yours And Mine, He's Funny That Way, Easy Living e I Must Have That Man. A senha de acesso aos arquivos é jazzseen. Boa audição!
Lady Day, Pres, Bean & Gerry
8 comentários:
Nossa...
esse foi a melhor definição q já vi..
dessa grande mulher do jazz..
=]
As faixas são verdadeiras iguarias Mr. Lester. Obrigado.
Ah, esse é o famoso cachorro que lambeu a cara de Luiz Paixão !
Belo texto, Lester. Parabéns!
Ei, o que o pork pie hat está fazendo na cabeça do Coleman???
Me gusta mucho bailar bajo la luz de la luna de mayo.
Lester, obrigado pela visita ao nosso blog e pelo comentário, que muito me honra, pois você também é estilista da palavra. Escolhi um dos textos seus, por acaso, para comentar e topei com esta maravilha concisa sobre Billie.
Quero estreitar os contatos, você está no Orkut, por exemplo? Vi que também gosta de Coltrane, enfim, só de coisa boa. É disso que o mundo precisa.
Abraço!
K.
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