Era uma noite como qualquer outra: Mestre Gumercindo carregava de um lado para o outro do Shopping Centro da Praia suas centenas de long plays, fitas-cassete, compact discs, além de milhares de gravações em mp3, em generosas sacolas de supermercado. E lamentava, comedido como sempre, o fato de não ser compreendido pelos demais colegas do Clube das Terças em sua cruzada em direção à digitalização de todas as gravações já realizadas em todos os tempos. É verdade, comenta-se sempre, que muitos julgam o projeto de Mestre Gumercindo uma grande loucura, outros, pura ingenuidade. Afinal, quantas seriam as gravações já realizadas? Qual o primeiro registro sonoro? Quem, onde e através de que meios tal gravação teria sido levada a cabo? Mestre Gumercindo leciona que a primeira gravação foi realizada em 6 de dezembro de 1877, por Thomas Alva Edison. O tema? Uma singela canção infantil, Mary had a little lamb. Colocando-se à frente de um estranho artefato, constituído de um cilindro estriado recoberto por papel de estanho - munido de um tubo acústico ligado a um estilete, que toca o papel - e acionado por meio de uma manivela - que faz girar o cilindro, Edison cantarola a canção enquanto gira a manivela, criando um sulco contínuo, em forma de mola, sobre o papel. Depois, voltando o estilete à posição inicial do sulco assim gerado, e girando a manivela, pode-se ouvir o cantarolar confuso e distorcido de Edison, embora reconhecível. Fernando, reconhecido bastião do Instituto Histórico e Geográfico, recalcitra Mestre Gumercindo, afirmando que o inventor do registro sonoro não foi Edison, mas sim Charles Cros, poeta e físico francês que, em abril de 1877, apresentou à Académie des Sciences um estudo exatamente igual ao de Edison. Pronto, estava estabelecida, mais uma vez, a cizânia entre os membros do Clube. João, batendo com o punho sobre a mesa, veio em defesa de Mestre Gumercindo, alegando que os poetas não são pessoas confiáveis.
Levantando-se da mesa em protesto, Mr. Grijó recordou que os norte-americanos tentaram fazer o mesmo com Santos Dumont, o inventor da aviação. Reinaldo, sempre calado e contemplativo, continuou assim. Mancando, Chico Brahma aproxima-se da mesa, sacando de seu saco plástico um velho e bem conservado tomo de The History of The Sound, de José Luis Pérez de Arteaga, onde resta documentado que, de fato, Clos colocou suas idéias apenas sobre o papel. Edison as pôs em prática. Enquanto o professor Pedro Nunes reclamava que Luis tem acento, nova balburdia assombrava as sempre pacatas reuniões do Clube. Mr. Salsa, mergulhado em suas especulações psicanalíticas, resmungava num canto algo sobre o fato de que a celeuma se devia ao simples fato de que Edison era baixinho: se fosse alto, magro e bem apanhado não lhe negariam a invenção, afirmou. Continuando, lembrou do caso de um amigo, considerado politicamente incorreto pelo simples fato de ser gordo: perdeu o emprego porque não havia uniforme extra large na companhia em que trabalhava. Pegando carona nos arquétipos renegados, o já enfisematoso Mr. Lester lembrou que não há mais espaço para a livre exposição das idéias: vivemos num tempo mais sórdido do que os tempos da Inquisição. Na Inquisição sabíamos ao menos quem poderia nos queimar e quem acenderia nossa fogueira. Hoje, hoje nem sabemos se a fogueira será acesa ou, se acesa, por quanto tempo nos queimará lentamente. Gordos, fumantes, muçulmanos, mulheres sem quadril, motociclistas sem capacete, cachorros sem coleiras, estamos todos cercados pelo sorriso estático dos tementes a Deus e ao chefe imediato. Foi quando o sócio André lembrou do trompetista Ruby Braff, um músico que dedicou toda sua vida a remar contra a maré. Fumante inveterado, morreria de enfisema, mas não sem antes ficar muito tempo sem trabalho pelo simples fato de ser sincero, falando abertamente o que achava das coisas. Intolerável, não é?
Cornetista e trompetista do dixieland e do mainstream jazz, Braff é um dos melhores músicos que reviveram os estilos New Orleans e Swing e, talvez, o melhor cornetista dessa escola revivalista. Além de seu completo domínio sobre a linguagem estabelecida por Louis Armstrong e Roy Eldridge, Braff soube recolher do bebop e do cool os elementos que considerava interessantes, descartando qualquer rajada gratuita de notas velozes ou qualquer experimento que negligenciasse o swing e o blues em sua concepção. Dedicou todo seu virtuosismo para a construção de uma sonoridade delicada sem ser maçante, melodiosa sem ser piegas, potente sem ser agressiva, veloz sem ser esnobe, comedida sem ser pobre. Seus registros graves na corneta são marcos definitivos daquilo que de mais bonito e agradável se fez no jazz mainstream nas décadas de 1950, 1960 e 1970. Numa época em que todo trompetista deveria tocar como Dizzy Gillespie, Braff nadava na direção contrária, substituindo a velocidade pirotécnica pela sedução melódica. Para os amigos fica a faixa Dinah ( ), retirada do álbum Them There Eyes – Sonet – 1976. Álbum que, aliás, já foi devidamente catalogado por Mr. Gumercindo em suas sacolas.
Levantando-se da mesa em protesto, Mr. Grijó recordou que os norte-americanos tentaram fazer o mesmo com Santos Dumont, o inventor da aviação. Reinaldo, sempre calado e contemplativo, continuou assim. Mancando, Chico Brahma aproxima-se da mesa, sacando de seu saco plástico um velho e bem conservado tomo de The History of The Sound, de José Luis Pérez de Arteaga, onde resta documentado que, de fato, Clos colocou suas idéias apenas sobre o papel. Edison as pôs em prática. Enquanto o professor Pedro Nunes reclamava que Luis tem acento, nova balburdia assombrava as sempre pacatas reuniões do Clube. Mr. Salsa, mergulhado em suas especulações psicanalíticas, resmungava num canto algo sobre o fato de que a celeuma se devia ao simples fato de que Edison era baixinho: se fosse alto, magro e bem apanhado não lhe negariam a invenção, afirmou. Continuando, lembrou do caso de um amigo, considerado politicamente incorreto pelo simples fato de ser gordo: perdeu o emprego porque não havia uniforme extra large na companhia em que trabalhava. Pegando carona nos arquétipos renegados, o já enfisematoso Mr. Lester lembrou que não há mais espaço para a livre exposição das idéias: vivemos num tempo mais sórdido do que os tempos da Inquisição. Na Inquisição sabíamos ao menos quem poderia nos queimar e quem acenderia nossa fogueira. Hoje, hoje nem sabemos se a fogueira será acesa ou, se acesa, por quanto tempo nos queimará lentamente. Gordos, fumantes, muçulmanos, mulheres sem quadril, motociclistas sem capacete, cachorros sem coleiras, estamos todos cercados pelo sorriso estático dos tementes a Deus e ao chefe imediato. Foi quando o sócio André lembrou do trompetista Ruby Braff, um músico que dedicou toda sua vida a remar contra a maré. Fumante inveterado, morreria de enfisema, mas não sem antes ficar muito tempo sem trabalho pelo simples fato de ser sincero, falando abertamente o que achava das coisas. Intolerável, não é?
Cornetista e trompetista do dixieland e do mainstream jazz, Braff é um dos melhores músicos que reviveram os estilos New Orleans e Swing e, talvez, o melhor cornetista dessa escola revivalista. Além de seu completo domínio sobre a linguagem estabelecida por Louis Armstrong e Roy Eldridge, Braff soube recolher do bebop e do cool os elementos que considerava interessantes, descartando qualquer rajada gratuita de notas velozes ou qualquer experimento que negligenciasse o swing e o blues em sua concepção. Dedicou todo seu virtuosismo para a construção de uma sonoridade delicada sem ser maçante, melodiosa sem ser piegas, potente sem ser agressiva, veloz sem ser esnobe, comedida sem ser pobre. Seus registros graves na corneta são marcos definitivos daquilo que de mais bonito e agradável se fez no jazz mainstream nas décadas de 1950, 1960 e 1970. Numa época em que todo trompetista deveria tocar como Dizzy Gillespie, Braff nadava na direção contrária, substituindo a velocidade pirotécnica pela sedução melódica. Para os amigos fica a faixa Dinah ( ), retirada do álbum Them There Eyes – Sonet – 1976. Álbum que, aliás, já foi devidamente catalogado por Mr. Gumercindo em suas sacolas.
8 comentários:
Grande Braff, excelente instrumentista.
JL, confira a cx que a de julho já esta lá com foto em mensagem separada.Abraço.Edú.
Pena que seja tão difícil encontrar as gravações feitas por Braff nas décadas de 50 e 60. Será que mestre Gumercindo as conseguirá?
Lester, fumar é um vicio e um castigo, já lhe bastam. Não se meta com o "projeto" de Mestre Gumercindo, pois o castigo será dobrado e seu destino será certamente um manicômio.
Mas, afinal, o Gugu tem ou não tem essa gravação de 1877?
Braff é um dos melhores trompetistas do jazz, de todos os tempos. Bem lembrado Mr. Lester.
Duas perdas consideráveis para o jazz e para a boa música popular americana ocorridas no mês de julho.Primeira, a morte do baterista Bobby Durham em 7 de julho, aos 71 anos vítima de um câncer pulmonar associado a enfisema em Genova.Durham foi um raros casos de músicos demitidos por Duke Ellington de sua banda.Certamente fato que não o desabona em si, já que Charles Mingus sofreu essa mesma experiência.E a própria demissão citada teve exatos dez minutos de duração.Após a comunicação de seu aviso prévio, Durham resolveu tocar de maneira mais relaxada,sem a necessidade de impressionar tanto a Duke.A ordem pra recontratação foi tão rápida quanto seu período de desemprego.Depois permanecendo no grupo ,por vontade própria, por 3 anos.Também passou pelo crivo exigente de Oscar Peterson fazendo parte do seu trio por 4 anos - do final dos anos sessenta até o inicio dos anos 70 seguido por breves períodos nos anos 80 e meados de 90.Suas participação como baterista na maior parte das gravações realizadas por Peterson ,em forma de trio,nos estúdios do engenheiro Hans Georg Brunner-Schwer na Alemanha, no final dos anos 60, encontram-se certamente entre as melhores do pianista canadense.Nos anos 70 e inicio dos 80,Bobby foi “quase” o baterista “fixo” do selo Pablo,de Norman Granz – pequena empresa fonográfica que virou um semi-albergue artístico para os tradicionais músicos de jazz que eram recebidos com “portas fechadas” em seu mercado de trabalho naquele período .Tocou por 4 anos com Ella Fitzgerald fazendo parte de seu ultimo grande trio de acompanhantes e instalando ,depois,moradia entre a Itália e Suíça, onde manteve intensa atividade de gravações e apresentações com músicos europeus até praticamente recentes dias prévios à sua morte.Outra perda, foi da cantora Jo Stafford , no dia 16, com mais de 90 anos de colapso cardíaco na Califórnia.A situação irônica é que o declínio artístico de Stafford iniciou-se por volta de 1955 quando sua gravadora ,a Columbia, lhe agraciou com disco de diamante por vendas de mais de 25 milhões de discos aos 28 anos de idade.Dois anos mais tarde seu publico “queria requebrar os quadris ao rock and roll”.Stafford ,cantora americana favorita de Nana Caymmi,era o caso fechado da vocalista que tinha versatilidade e preparo vocal – ambicionava tornar-se uma cantora de ópera na adolescência - esmero e delicadeza na condução de qualquer espécie do repertório dito popular.Fez parte do Pied Pipers, quarteto vocal que fazia coro nos anos 40 ao franzino “crooner” de olhos azuis da banda de Tommy Dorsey chamado Francis Albert Sinatra.Dois anos depois, era Jo que se tornava solista obtendo a satisfação de Tommy, o maior trombonista melódico do jazz.Dorsey,rigoroso, praticamente esboçava sorriso apenas ao apreciar os balancetes enviados pelo seu contador na época das “vacas gordas” do seu grupo.Stafford foi voluntária em apresentações musicais em bases militares nas áreas de batalha na II Guerra Mundial e da Coréia nos anos 50.Casou-se pela segunda vez com Paul Weston, sofisticado arranjador de Dorsey e que se tornaria líder de orquestra e referência ,positiva, na chamada corrente do “easy listening”.Após passagem por diversos selos e estilos,Stafford “aposentou-se” em 1966.No entanto , em 1992, o baixista Charlie Haden ,com seu grupo Quartet West , de inspiração nas trilhas sonoras do chamado “cinema noir”,promoveu pequeno resgate público ao colocar o take de sua voz como guia à uma nova versão da canção Haunted Heart em cd de mesmo título , o melhor produzido pelo grupo de Haden,até hoje.Descansem,Jo e Bobby, em paz.Edú
Saudade do Jazzseen...cheguei hoje e corri para ler as novidades; ótima resenha, embalada pelo som gostoso de Braff...Dei boas risadas por conta da história do Clube das Terças, parece até que conheço o pessoal! Muito bom, Mr. Lester!
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