23/11/2008

Strozier na lata

Eu comentava com John Lester sobre as palavras de Nelson Motta em sua primeira coluna para o Jornal da Globo, que agora acontecerá toda sexta. Ele, Nelson, dizia da necessidade de se filtrar o que é culturalmente bom na internet, para que as pessoas possam comprar o que é bom. Fiquei pensando se aquilo era apenas uma grande brincadeira do Nelsinho ou se ele realmente tem a presunção de ser o censor cultural da net, indicando às pessoas o que é culturalmente bom e o que deve ser adquirido. E toda essa pretensa pilhéria foi dita logo após sua entrevista de estréia, quem diria, com o rei Roberto Carlos, uma das piores fraudes culturais já fabricadas pela Rede Globo. Fui ao chat conferir as palavras de Nelson, mas, é claro, ele não me respondeu quem é que vai filtrar o que é bom na net e quem é que vai me dizer o que devo consumir em arte. John Lester, que sempre se autodenominou antítese de Macunaíma, o vilão com muito caráter, lembrou imediatamente das 90 latas de fezes produzidas pelo aclamado artista italiano Piero Manzoni, em 1961 – uma alegoria intestina que tentava denunciar a relação entre merda, arte e dinheiro, todas vendidas a preço de ouro no mercado especializado. Nelsinho, prosseguiu Lester, provavelmente espera enlatar suas próprias fezes, agora com o auxílio da Rede Globo, responsável pelo enlatamento afrontoso de Roberto Carlos, Xuxa, Didi & Cia. Haja lata, bradava Lester. Quase que por descuido, comentei quantas injustiças já ocorreram na música em virtude de comportamentos como o do Nelsinho, atribuindo-se a si mesmo o papel de árbitro e enlatador cultural. Foi quando John Lester citou Fredegunda, a serviçal e concubina que se tornou rainha da França nos anos 500.




Assim como ocorre no Brasil de hoje, ensinava Lester, Fredegunda condenava seus inimigos sem sequer ouvi-los, driblava as leis, ajustando-as aos seus interesses, com as famosas precepções – mistura de veto com medida provisória. Foi assim que Fredegunda convenceu Chilperico I, filho de Clotário I, rei de todos os francos, a repudiar sua primeira esposa, Audovera e matar todos os filhos que teve com ela. Já como amante de Chilperico I, Fredegunda convence o rei a estrangular sua segunda esposa, Galswintha. Com o jeitinho feminino que nos encanta a todos, a meiga Fredegunda assassina Sigeberto, irmão de Chilperico I, ampliando assim o poder daquele que agora já é seu marido. Logo após dar um filho a Fredegunda, Chilperico I é apunhalado diversas vezes até a morte. A triste viúva parte então para Paris, onde consegue fazer com que seu filho Lothar (Clotário II) seja reconhecido como o legítimo herdeiro do reino de Nêustria, além de promover diversas batalhas sangrentas pelo poder na França. Fui obrigado a interromper Lester em sua hemorrágica narrativa para perguntar sobre o sax alto que brotava de seu toca-discos. Lester disse que se tratava de mais uma dessas injustiças cometidas pelos Nelson Mottas da vida: quem tocava era Frank Strozier, um então jovem e promissor saxofonista de Memphis, terra de grandes músicos de jazz. Ao contrário de Nelsinho, o enlatador de coco mais simpático que conheci, as profecias de Ralph Gleason, importante colunista e crítico de jazz, nem sempre se concretizavam: Gleason disse certa vez que ainda ouviríamos falar muito em Frank Strozier...


Bem, ao menos podemos encontrá-lo nos guias de jazz, não é emsmo Mr. Lester? Nem sempre, Mr. Bravante. No Rough Guide não há referência, nem na Virgin Encyclopedia. São poucos os críticos, como é o caso de Richard Cook e sua Jazz Encyclopedia, que atualmente falam sobre Strozier. O camarada é tão esquecido que seu último álbum, lançado pela Steeplechase, chama-se Remember Me! Frank começou a carreira em sua cidade natal, ao lado do MJT + 3, liderado por Walter Perkins. Mais tarde, já em New York, trabalharia com Roy Haynes e Miles Davis, partindo então para a California, onde atuaria ao lado de Shelly Manne e Don Ellis. Desiludido e mal gravado, em 1983 abandona a música até a década de 1990, quando retorna ao jazz tocando piano. Quando pensei em elogiar o Frank, Mr. Lester começou a recitar um fragmento de Para Acabar Com O Julgamento de Deus, um famoso poema de Artaud, o poeta francês que recebeu aconchegantes sessões de eletro-choque de seu bondoso psiquiatra: “O homem podia muito bem não cagar/mas preferiu cagar/assim como preferiu viver”. Enquanto lembrava de Paul Valéry e seu poema em prosa Diário de Emma, onde conclui que o coco é nossa obra mais importante, resolvi que Nelson tinha sim o direito de enlatar suas fezes à vontade e vendê-las para o crédulo espectador da Globo. Enquanto isso, ficaria eu por aqui, ouvindo o álbum Fantastic Frank Strozier, com Booker Little (t), Wynton Kelly (p), Paul Chambers (b) e Jimmy Cobb (d). Para os amigos fica a faixa WK Blues . Boa audição!

15 comentários:

John Lester disse...

Prezado Mr. Bravante, obrigado por mais uma relevante contribuição à nossa pequena fábrica de enlatados.

Grande abraço, JL.

Heide Wittgensz disse...

Die Geschichte erzählt den Krieg zweier Frauen: Chilperich, König des westlichen Frankenreichs, muss aus politischen Gründen die westgotische Prinzessin Galsuinde heiraten. Das missfällt seiner Mätresse Fredegunda, einer ebenso faszinierenden wie gefährlichen Frau mit zauberischen Kräften. Die will selbst den Thron besteigen und zettelt bei Ankunft der Kontrahentin ein perfides Intrigenspiel an. Trotz ihrer "Zauberkräfte" muss Fredegunda schließlich der Prinzessin weichen. Das politisch korrekte Herrscherpaar wird bejubelt, während Fredegunda ihre eigenen Wege geht.

Regie führt Tilman Knabe. Er zählt zu den wichtigsten Theatermachern in Schauspiel und Oper – ein bildmächtiger Regisseur, der zu einer außergewöhnlich expressiven Theatersprache fähig ist. Auf drastische Weise stellt Tilman Knabe den Zusammenhang von Gier und Macht in den Vordergrund seiner Inszenierung.

Anônimo disse...

Delícia!

Anônimo disse...

Resenha drástica, porém necessária.

Anônimo disse...

Caro Frederico Bravante

Frank Strozier é verbete na "The Bigraphical Encyclopedia Of Jazz" (Leonard Feather & Ira Gitler), apesar de o texto ser muito resumido. Strozier também é citado no "All Music Guide To Jazz", onde são divulgadas algumas de suas gravações como líder.

Olmiro Muller

Anônimo disse...

Nelson, separe uma lata pra mim!

Rogério Coimbra disse...

Mr. Lester:
Esse disco esteve entre nós capixabas em 1966. Curioso é que entre nós aficionados do jazz(gostou do aficionados?), destacndo-se Marco Antônio Grijó, o saudosíssimo Arlindo Castro e eu mesmo, vez ou outra, perguntávamos: e o Frank Strozzier, hein ? Sumiu...
Mais curioso é que ele sempre esteve ao lado de gente boa e mesmo seu sopro era atrevido para a época. Hoje, esse vinil pertence ao acervo do Clube do Vinil de Vila Velha, associação que recebeu meus arranhados bolachões de jazz. Mas a pergunta que não pode calar e que foi levantada novamente no Jazzseen.: e o Frank Strozier, hein?

Anônimo disse...

De onde esse tal de Lester inventa tanta bobagem? Essa tal de Fredegunda existiu mesmo???

Salsa disse...

Meus amigos, Lester é contador de história de primeira linha! Suas incursões narrativas pelos descaminhos da história enriquecem a devastada seara humana. Até a latinha do Nelson fica com outro cheiro. Prefiro, no entanto, encaminhá-la para algum laboratório de análises clínicas resolver se é da boa ou se está contaminada. De qualquer modo, segue uma receita lá do interior: lá em Mucurici o plantonista do hospital municipal receitava sementes de mamão para curar verminoses (enviaremos algumas latas para o cagão?)
O global, com certeza, nunca citará Strozier.
Parabéns para ambos, Bravantes e Lester, pelo excelente trabalho.

John Lester disse...

Prezados leitores, é com regalo que observo a reação de nosso pequeno e fiel público. E, amigo Adalberto, não inventei nada que já não estivesse rabiscado naquele volume clássico de Montesquieu, O Espírito das Leis. A fonte principal do barão foi a magnífica e parcial L'Histoire des Rois Francs, de Grégoire de Tours, inimigo manifesto de Chilperico I, a quem comparava a Heródes ou Nero. O que dizer, diante disso, da doce Fredegunda?

E viva as mulheres no poder!

Anônimo disse...

JL, confere q acabei de enviar com foto em mensagem separada.Abraço.Edú.

Marcello Lopes disse...

Absurdamente importante e real esse porst, imagine quantos músicos de qualidade não foram censurados pelos "entendidos" da Globo ou de outros meios de comunicação.

Fezes neles !!!

Um grande abraço.

Anônimo disse...

excelente.pena que acultura seja determinada por poucos numa midia tao corrompida pelo poder e dinheiro, eque nosso povo seja ignorante logo tao manipulavel...ainda bem q ainda existem estas ilhas de ideias e sugestoes tao interessantes. alguem ja disse que as coisas maisvaliosas sao as mais raras.prabens por este valioso espaco

Anônimo disse...

excelente.pena que acultura seja determinada por poucos numa midia tao corrompida pelo poder e dinheiro, eque nosso povo seja ignorante logo tao manipulavel...ainda bem q ainda existem estas ilhas de ideias e sugestoes tao interessantes. alguem ja disse que as coisas maisvaliosas sao as mais raras.prabens por este valioso espaco

Anônimo disse...

Êle é simpático mesmo...fico surpresa com essa posição do Nelsinho, será que está ficando gagá?
Ótima resenha, Señor Bravante!