04/01/2009

Buccina Cantorum

Quando cheguei naquela manhã encontrei vovó Tícia tocando descalça sua velha casaca, indício suficiente de que a macarronada de sábado certamente atrasaria, pensei. Orgulhosa, vovó empunhava seu reco-reco de forma quase exibicionista, alegando que fora carpido por Mestre Vitalino, maior artesão de casacas da Barra do Jucu, pequena cidade do litoral capixaba que insiste em manter viva a tradição do congo. Enquanto vovó Tícia demonstrava seu exuberante estilo ao reco-reco, vovô Acácio limpava cuidadosamente o centenário deck de jatobá da varanda com suas escovas de aço, latão e nylon para tacos de golfe – é que a lixa, justificava ele, aniquila os belos veios da madeira. Não, lixar jamais! Primeiro a escova de aço, retirando algumas pedrinhas indesejadas, depois a de latão, introduzida suavemente nas fendas. Na seqüência, a de nylon, que retira as fibras mortas e a poeira, deixando a madeira pronta para receber a cera de carnaúba. Enquanto os ritmos da casaca e das escovas se confrontavam, um belo trompete escorria incólume pela janela leste da biblioteca. Comentei com vovô como era lindo o som do trompete e também o quanto eu lamentava a perda de Freddie Hubbard. Vovô suspirou profundamente, fixando o olhar triste no marrom avermelhado do jatobá, e disse: sim, Paulinha, o trompete tem o som mais bonito entre os instrumentos de metal ou brass instruments, família formada pela trombeta (trompete), trompa, trombone e tuba. Vovô lembrou que o trompete, assim como a maioria dos instrumentos de sopro, surgiu antes da História. Os trompetes mais antigos, disse ele, possuíam a atual forma reta ligeiramente curvada, sendo feitos de madeira, cana, búzios (do grego strombos, que forneceu a palavra trompa) e chifres ou cornos (horn) esvaziados, e não apresentavam bocal nem pavilhão. Somente com o descobrimento dos metais, sobretudo do bronze, é que surge um material apropriado para a construção de instrumentos de sopro. Veja aqui Paula, note como a escova de latão não produz faíscas nem arranha a madeira. Apenas muitos anos depois é que o bocal se separou do tubo. Como quase toda invenção humana, inclusive a própria música e a marcenaria, o trompete tinha finalidades militares ou religiosas. No Egito era utilizado pelos exércitos e nos mistérios em honra do deus Osíris, considerado o seu inventor. Também para os hebreus o trompete tinha caráter divino, conforme prescrito no Velho Testamento, Números, Capítulo 10: “Falou mais o SENHOR a Moisés, dizendo: Faze duas trombetas de prata; de obra batida as farás; e te serão para a convocação da congregação e para a partida dos arraiais. E, quando as tocarem ambas, então, toda a congregação se congregará a ti à porta da tenda da congregação. Semelhantemente, no dia da vossa alegria, e nas vossas solenidades, e nos princípios dos vossos meses, também tocareis as trombetas sobre os vossos holocaustos, sobre os vossos sacrifícios pacíficos, e vos serão por lembrança perante vosso Deus.” Somente aos sacerdotes era permitido tocá-lo nas festas solenes e durante a ação de graças, além de seu uso militar. Ainda hoje os judeus utilizam o chofar (chifre de carneiro) no anúncio de certas cerimônias realizadas nas sinagogas. Gregos e etruscos usaram o trompete quase que exclusivamente para fins militares, ao passo que os romanos o utilizaram também para fins religiosos, sobretudo ao ar livre. Em Roma já se conheciam a tuba (utilizada pela infantaria), o lituus (utilizado pela cavalaria e o primeiro a possuir bocal independente), o cornu (espécie de tuba em espiral) e a buccina. Todos produziam sons fortíssimos e horrendos, alguns chegando a ser assustadores, conforme relatos de escritores da época: horribilis, terribilis, raucus, rudis.
Com a queda de Roma, o trompete desaparece da Europa, reaparecendo apenas graças às Cruzadas. Impressionados pelo brilho das bandas militares muçulmanas, os cristãos adotaram alguns de seus instrumentos, entre eles o nafir, espécie de trompete comprido e estreito, devidamente batizado de buisine, talvez em homenagem à velha buccina romana. A buisine era imensa, chegando a quase dois metros de comprimento, terminando num largo pavilhão. Os trompetes menores eram denominados clarion. A palavra trombeta, diminutivo de trump ou trompe, representou na verdade uma variada gama de instrumentos de metal que possuíam um som forte e brilhante, ideal para as cerimônias, o que lhes valeu os favores de governantes e de líderes religiosos. Tanto é que, entre os músicos profissionais, somente os trombeteiros e os tocadores de timbales possuíam privilégios e posição social de destaque, além de tocarem nas festas solenes. Foi somente durante o solo de Hank Jones que nossos ouvidos perceberam que vovó Tícia trocara a casaca pelo ralador de queijo. Era um granulado grana padano, ideal para acompanhar o farfalle com cogumelos fritos com cebolinha verde. Salivante, vovô Acácio saltou direto para o século XV, quando os trompetes passaram da forma reta para a curva, como uma letra s. Somente um século depois o trompete retornaria mais ou menos para a forma que tem hoje, com tubo cilíndrico em dois terços de seu comprimento, alargando na parte final para formar o pavilhão. Com o aprimoramento técnico do instrumento, o que suavizou gradativamente sua sonoridade, o trompete sai dos campos de batalha e dos templos religosos para os salões de música. Como só conseguisse produzir os harmônicos de sua nota fundamental, este trompete era chamado de “natural”. Construído em diferentes tonalidades, deu origem a uma família de cinco membros: clarino, quinto, alto, vulgaro e basso. Em 1607 Claudio Monteverdi utilizou pela primeira vez o trompete na música clássica, em sua ópera Orfeo. Daí em diante, com sua inclusão como instrumento de concerto, o sucesso e a evolução técnica do trompete só fez crescer, embora tenha sido perseguido por militantes do PT entre 1750 e 1815, época em que a Revolução Francesa condenou o instrumento por sua associação com o Ancien Régime. Ultrapassada a revolução, os músicos trataram de transformar o trompete natural num instrumento cromático. Depois de várias tentativas – trompete de chaves, trompete a coulisse, trompete de harmonia – um alemão chamado Heinrich Stölzel (1772-1844) inventou, em 1815, o mecanismo de pistões, revolucionando o trompete e permitindo que se produzisse a escala cromática com grandes vantagens. Rapidamente o trompete de pistões se impôs e gerou sua prória família: trompete pequeno em si bemol, fá ou ré, utilizado mais nas obras barrocas; trompete em dó ou em si bemol, que é o mais utilizado; o pouco utilizado trompete em fá grave e o trompete baixo em dó e em si bemol, introduzido por Richard Wagner. Com seu timbre forte, nobre e claro, o trompete produz um som nítido e homogêneo, salvo quando se aproxima das nostas mais baixas ou mais altas, quando o intérprete penetra numa região bastante escorregadia. Como se não bastasse, é tão ágil que permite a repetição de notas em staccato em alta velocidade, além de efetuar celeremente escalas diatônicas ou cromáticas, bem como arpejos em ligadura com extrema facilidade. Depois de retirar os restos de jatobá da bermuda e guardar a cêra no velho armário da garagem, vovô aumentou o volume da faixa Cherokee , do álbum Wilder ‘N’ Wilder, que ele ouvia em homenagem a Freddie Hubbard. No trompete estava Joe Wilder, Hank Jones (p), Wendell Marshall (b) e Kenny Clarke (d), gravado em 19 de janeiro de 1956. Na mesa o macarrão fumegava.

17 comentários:

John Lester disse...

Obrigado Paula por mais uma fumegante resenha.

Grande abraço, JL.

Anônimo disse...

Belíssimo início de domingo...!!!
Som maravilhoso, texto...magistralmente(exagero?) desenvolvido, A-D-O-R-E-I!!!!
Fora a vontade de estar à mesa com Vovô Acácio e Vovó Tícia, Paulinha e o resto da turma, o macarrão devia estar delicioso...

Anônimo disse...

Cara Paula,
Viva!
Tenho acompanhado seu blog com entusiasmo, embora com uma pontinha de inveja, confesso, dos que realmente podem desfrutar dos excelentes trabalhos nele postados. Sou músico, cinqüentão, artista plástico e fotógrafo, que muito contribuiu para que a música em minha cidade (Mococa, interior paulista) deslanchasse, lá pelos bons idos 1980. Guitarrista, venho da escola do jazz, particularmente, a do jazz-rock e blues. Flautista, estudei na escola Municipal de Música (SP)e fiz parte de um quarteto especializado em criar trilhas sonoras para filmes mudos alemães, clássicos expressionistas da década de 1920. Fiz parte da um quarteto de jazz (Ojos negros) e de uma bela banda de blues (Banda do Irmão and the Trully Horns.
Gostaria de participar e ser incluído na sua lista de ouvintes, ou que nome se d~e a uma lista exclusiva de participantes de blogs. Mantenho um site, e sei a que duras penas você e seus amigos mantêm tal projeto.
Inclua-me, por favor, na sua breve lista de invejados ouvintes.
meu site; www.paginadeideias.com.br

Poderei, caso necessite, colaborar com o seu blog, com matérias sobre artes plásticas (minha especialidade: arte moderna e contemporãnea, fotografia e música.
deixo, por fim, um grande abraço, e um belo e pleno 2009, repleto de bons projetos!
Luiz Antônio Scarparo maciel - cidade de Mococa, janeiro/09

Anônimo disse...

Da casaca(reco-reco) de vovó Tícia, passando pelo Egito, Deus, Hebreus, Cruzadas, PT, ralador de queijo, Revolução Francesa, Heinrich Stolzel, macarronada, vovô Acácio, tacos de golfe e o escambau. Uma história completa sôbre o trompete. Um texto laudatário de fazer inveja aos prolixos. Haja saco! Tudo isso para apresentar o album de Joe Wilder "Wilder'n'Wilder (O CD desaparecido de mr.Lester). Aliás excelente disco, despontando Hank Jones ao piano em exuberante atuação, sem desmerecer o ótimo desempenho de Wilder. As músicas são todas conhecidas, das quais "Mad about the boy" (em andamento lentíssimo, se a compararmos com a execução de Billy May do disco Dance to the bands), "My heart stood still" e "Six bit blues", são as minhas preferidas. Album nota 10!

Sergio disse...

Querida 'fessorinha', encontraste o tom certo para homenagear o homem; Hubbard; os metais, especialmente o trumpete - velho pai de família -; a música, por tabela o jazz e por fim a própria família. Que todos temos, ou melhor, devemos entender como o 2º núcleo da civilização depois do indivíduo. Grato, gratíssimo, muito grato mesmo.

Vagner Pitta disse...

...wow!!! Joe Wilder?

...uma escolha genial do fundo do baú, heim Paula!!?


e quando a Freddie Hubbard, um dos verdadeiros e únicos sacerdortes que puderam tocar com aquele virtuosismo todo, que ele seja um dos anjos trombeteiros de agora em diante...

Vagner Pitta do www.farofamoderna.blogspot.com

Feliz 2009 à todos do Jazzseen!!!

Marília Deleuz disse...

Querida Paula, que 2009 continue assim, bem escrito, com bom gosto e repleto de boa comida e boa música. Beijos de sua amiga.

Anônimo disse...

Paula é nociva.

Salsa disse...

Paula, Paula, Paula, o que dizer de suas histórias? Aguardo por outras.
Quanto aos trompetes, depende do piloto. Wilder é bom. Aliás, eu estava ouvindo um disco do Chet (65) muito bom (depois postarei lá no meu quintal), durante a minha caminhada vespertina sob chuva e ventania na orla de Camburi. Seriam as trombetas do pós-calipso?
Abraços,
PS - Diga-me, Paula, Marília é aquela sua prima do interior paulista?

Sergio disse...

Caro Salsa, nocivo é esse seu humor... seria blasé ou joão sem braço?

Flávia Muniz Cirilo disse...

altamente voltável!!!!!

Andrea Nestrea disse...

texto lindo de memória!
lindo aqui!adorei!
vou vir mais vezes para apreciar aos poucos!! também tenho alguns pitacos sobre jazz no meu caderno, se puder visite!
beijos

figbatera disse...

Belo texto; parabéns, Paula!
E quero tb, como um dos mais antigos leitores do Jazzseen, (com licença, Mr.Lester) dar as boas-vindas aos novos visitantes deste blog. Pra quem gosta e quer saber mais, isto aqui é "obrigatório".

Anônimo disse...

Que escrita sensacional.
O tema nao poderia ser melhor. O instrumento que escolhi para aprender durante toda minha vida e ainda não conhecia sua história a fundo como foi exposta por aqui.

A musica também: palmas!

Danilo Toli disse...

Linda, você sempre arrasando. Beijos!

Anônimo disse...

It seems a little more than I need to check the information, because I was thinking: Why does not my GLOG these things!

Anônimo disse...

Although we have differences in culture, but do not want is that this view is the same and I like that!
nylon fishing net