Depois de tanto tempo perdido tentando defender que as mulheres também sabem tocar jazz, enfim voltamos a falar sério. Após trocarem infinitas cartas carameladas de amor durante quase um ano, John Lester finalmente resolve conhecer Sabina, uma daquelas beldades tipicamente russas: pele branquíssima, sensível ao sol, estômago firme, indiferente à vodka, olhos e cabelos cinza-amarelados, como os de um puma. Sabina R. – sim, Lester pediu-me que ocultasse o sobrenome da moça – era, para mim, apenas mais uma extraordinária paixão idealizada pelo amigo carioca, cheio de teses e teorias sobre as mulheres e o amor. Ele sempre repetia em nossas reuniões no Clube das Terças: um dia ainda namoro uma socióloga russa! E o tempo passou, até que um dia, investido com aquele ar grave de quem está prestes a espremer um furúnculo, Lester declara: “Fred, prepare as malas. Estamos partindo para o Azerbaijão! Sorri, perguntando ao garçom que diabo de bebida teria sorvido Lester e pedindo-lhe uma dose daquilo. E Lester prosseguiu: “Faremos escala em Moscou, onde Sabina nos espera com uma amiga que adora a Espanha e ficou bastante excitada com a perspectiva de conhecê-lo. Você topa?”. Entre surpreso e animado, concordei apreensivo e, de fato, duas semanas depois desembarcávamos em Moscou. Lester carregava apenas uma pequena mochila, contendo dezenas de cuecas, meias e camisetas Hering brancas. Sobre seu corpo, um espesso sobretudo de couro forrado com lã de carneiro, legado que seu avô, ex-combatente da FEB, havia usado na campanha da Segunda Guerra na Itália. "Abateu cinco aviões nazistas", vangloriava-se Lester.
Minhas três malas fartas lembravam assustadores ursos polares mas não foram suficientes para aplacar o frio e quase nos fizeram chegar atrasados ao encontro com as jovens azerbaijonas. Quando me viu, Nikki pensou que meu nariz congelado fosse quebrar a qualquer momento, motivo pelo qual, abandonando as malas na calçada, corremos todos para o bar mais próximo, onde compressas mornas conseguiram mantê-lo em meu rosto. E, embora ainda sem olfato, pude finalmente conhecer Sabina, em carne, osso e beleza. Enquanto Nikki cuidava de meu membro ainda endurecido, percebi que Sabina e Lester cochichavam algo animadamente na mesa ao lado. Entre outras coisas, comentavam sobre a moça que tocava piano no fundo do bar, Aziza Mustafa Zadeh. Mais tarde, já em Baku, onde Sabina morava e trabalhava numa empresa petrolífera, ficamos conhecendo os discos do pai de Zadeh, o pianista Vagif Mustafa Zadeh, talvez o maior músico de jazz do Azerbaijão. Também nascido em Baku, em 16 de março de 1940, Vagif morreu muito cedo, aos 39 anos, vítima de um ataque cardíaco. Começou a estudar o piano aos 3 anos, graduando-se no Baku State Musical Technicum e ingressando logo em seguida no Azerbaijani State Conservatorium. Apesar da sólida formação clássica e do talento extraordinário, Vagif apaixonou-se pelo jazz, tornando-se um dos primeiros músicos importantes desse estilo num país ainda pouco afeito ao jazz naqueles tempos. Abandonando o Conservatório, lidera o conjunto Orero. Mais tarde, fundaria o trio Qafqaz, criando o quarteto Leyli (com mais três mulheres) e dirigindo o grupo Sevil. Sempre presente nos festivais de jazz da Rússia e do Azerbaijão, Vagif teve seu valor musical reconhecido ainda em vida. Dizzy Gillespie disse o seguinte sobre ele: “Vagif was a great genie but I think he was born before his time. Vagif’s music is from another planet. It’s Music from the Future”. Na verdade, embora Dizzy tenha tentado elogiá-lo, Vagif não era um músico posterior ao seu tempo, nem sua música era de outro planeta.
Na faixa The Man I Love podemos perceber, além da sua virtuosidade explícita, um refinamento e uma sensibilidade bastante contemporâneos, diria mesmo românticos à maneira russa, e nada alienígena. Talvez o que Dizzy tenha considerado de outro mundo tenha sido o componente folclórico que Vagif fez questão de fundir com o jazz, baseado no Mugham, um dos estilos típicos do Azerbaijão, que guarda proximidade com a música persa. Baseado na escala modal, é um estilo complexo e que exige muita destreza do executante, mas não há nada de extraterrestre nele, exceto, talvez, na concepção de um trompetista do bebop que confunde o planeta Terra com New York. Se não houvesse essa terrível restrição de caracteres nas resenhas Jazzseen eu poderia contar mais sobre nossa aventura, como nossa visita ao Cáucaso, terra onde nasceu o vinho e onde perdi meu lóbulo esquerdo. Mas fica para a próxima. Na faixa, retirada do álbum One day in Kiev, gravado em 1978 e lançado em 2003 pelo selo Taras Bulba, Vagif é acompanhado por dois indivíduos cujos nomes eu não consigo ler e meu teclado não consegue escrever.
Minhas três malas fartas lembravam assustadores ursos polares mas não foram suficientes para aplacar o frio e quase nos fizeram chegar atrasados ao encontro com as jovens azerbaijonas. Quando me viu, Nikki pensou que meu nariz congelado fosse quebrar a qualquer momento, motivo pelo qual, abandonando as malas na calçada, corremos todos para o bar mais próximo, onde compressas mornas conseguiram mantê-lo em meu rosto. E, embora ainda sem olfato, pude finalmente conhecer Sabina, em carne, osso e beleza. Enquanto Nikki cuidava de meu membro ainda endurecido, percebi que Sabina e Lester cochichavam algo animadamente na mesa ao lado. Entre outras coisas, comentavam sobre a moça que tocava piano no fundo do bar, Aziza Mustafa Zadeh. Mais tarde, já em Baku, onde Sabina morava e trabalhava numa empresa petrolífera, ficamos conhecendo os discos do pai de Zadeh, o pianista Vagif Mustafa Zadeh, talvez o maior músico de jazz do Azerbaijão. Também nascido em Baku, em 16 de março de 1940, Vagif morreu muito cedo, aos 39 anos, vítima de um ataque cardíaco. Começou a estudar o piano aos 3 anos, graduando-se no Baku State Musical Technicum e ingressando logo em seguida no Azerbaijani State Conservatorium. Apesar da sólida formação clássica e do talento extraordinário, Vagif apaixonou-se pelo jazz, tornando-se um dos primeiros músicos importantes desse estilo num país ainda pouco afeito ao jazz naqueles tempos. Abandonando o Conservatório, lidera o conjunto Orero. Mais tarde, fundaria o trio Qafqaz, criando o quarteto Leyli (com mais três mulheres) e dirigindo o grupo Sevil. Sempre presente nos festivais de jazz da Rússia e do Azerbaijão, Vagif teve seu valor musical reconhecido ainda em vida. Dizzy Gillespie disse o seguinte sobre ele: “Vagif was a great genie but I think he was born before his time. Vagif’s music is from another planet. It’s Music from the Future”. Na verdade, embora Dizzy tenha tentado elogiá-lo, Vagif não era um músico posterior ao seu tempo, nem sua música era de outro planeta.
Na faixa The Man I Love podemos perceber, além da sua virtuosidade explícita, um refinamento e uma sensibilidade bastante contemporâneos, diria mesmo românticos à maneira russa, e nada alienígena. Talvez o que Dizzy tenha considerado de outro mundo tenha sido o componente folclórico que Vagif fez questão de fundir com o jazz, baseado no Mugham, um dos estilos típicos do Azerbaijão, que guarda proximidade com a música persa. Baseado na escala modal, é um estilo complexo e que exige muita destreza do executante, mas não há nada de extraterrestre nele, exceto, talvez, na concepção de um trompetista do bebop que confunde o planeta Terra com New York. Se não houvesse essa terrível restrição de caracteres nas resenhas Jazzseen eu poderia contar mais sobre nossa aventura, como nossa visita ao Cáucaso, terra onde nasceu o vinho e onde perdi meu lóbulo esquerdo. Mas fica para a próxima. Na faixa, retirada do álbum One day in Kiev, gravado em 1978 e lançado em 2003 pelo selo Taras Bulba, Vagif é acompanhado por dois indivíduos cujos nomes eu não consigo ler e meu teclado não consegue escrever.
18 comentários:
Acordei mais cedo e fui o primeiro a chegar aqui hoje.
A estória introdutória é bastante interessante; daria um bom romance ficcional.
O pianista russo é realmente virtuoso e faz um maravilhoso solo na linda faixa apresentada. Gostei!
Gostei do parágrafo inicial: quer dizer então que defender as mulheres que tocam jazz não era sério?
A história que vem a seguir, é muito boa, espero ler o próximo capítulo.
Abraços
fred é nocivo
O amor é lindo. Já entrei numa roubada dessa de acompanhar enamorado a lugares ermos - quase morri de frio. Mas... Azerbaijão?!? Putz!
Mais curioso é saber que tem jazzista naquelas plagas. O clima é romântico-russo mesmo.
Srta. Berger, sem desmerecer a ampla capacidade intelectual feminina, eu realmente acredito que mulher não sabe tocar jazz, principalmente quando o instrumento é o contrabaixo e o trompete. Creio que a literatura é uma arte mais afeita aos atributos femininos.
Um abraço e obrigado por sua participação.
Frederico, se dependesse de mim você estaria sem o nariz. Passar bem.
Concordo com o Fred em parte, mas o som das meninas é de primeira. Valeu pela resenha.
Música maravilhosa. Jazzseen mostra que música boa pra valer não está diponível pela web, já que nunca consigo baixar nenhuma dessas preciosidades que nos acompanham a leitura dos bem escritos artigos.
Em tempo, felizmente nao me restrinjo a obter músicas pela internet.
Prezado Bruno, embora quase tudo o que Mr. Bravante escreve seja ficção, não há dúvidas da existência e da qualidade musical de Vagif. Em qualquer esquina de Baku o álbum do pianista pode ser encontrado. Quando for ao Azerbaijão, não hexite em compra-lo.
Grande abraço a todos e desculpas especiais às meninas, que têm suportado com elegância as pilhérias chovinistas de nosso colaborador espanhol.
JL.
Adorei o piano!
E quanto às malas?
Seu Lester, o sr sabe q é mister pra mim. Então, na humildade, nem vou me alongar. Passe por favor na choupaninha sônica e me diz se estou variando ou se repetir a audição, já pela 5ª vez do álbum postado é exagero meu. Grato.
delicia...
Mr. Lester,
excepcional musico e gravação excelente!
Não deu pra ouvir as tais influencias do Azerbaijão e da Persia mas com certeza é jazz de primeirissima. A grande influencia que ouvi é de Herbie Hancock ,sem a exuberancia ritmica desse. É só uma influencia pois o grande merito de Vagif é usar um vocabulario que hoje em dia é utilizado quase que a exaustão pelos pianistas contemporaneos e ser absolutamente original.
Bravissimo!!!
Abraço
Prezado Tandeta, como sói concordamos com sua perspicaz audição. O resto do álbum em tela é por demais rica em elementos do folclore natal de Vagif. E, creio, deve ser degustado em pequenas doses pelo ouvinte mais interessado.
Grande abraço, JL.
Mr. Lester,
mande mais ,se possivel,estou muito curioso para conhecer . De todo modo correrei atras.
Outrossim se faz mister(sempre quis escrever isso)elogiar as escolhas do Sr e de seus companheiros nas postagens de musicas.
Vagif Zadeh,Tubby Hayes,Cal Massey e Min Rager,por exemplo eu nunca nem tinha ouvido falar e são grandes musicos que conheci aqui no Jazzseen.
Muito obrigado.
Abraço,
maravilhosa interpretcào.influencias orienyais bem delicadas e sutis como deveria se esperrarr.
concorda c/ tandetana primeira peta,porem aliteretura,rassa prncipalmanta tamtem e trritorrio masculina.
brava, lester
Ô¬Ô
Sr Frederico
somente hj atraves de um link do Seu Sérgio Sônico tomei conhecimento deste post. Sobre o Vagif tudo já foi dito e nada tenho a declarar. Porém, sobre a idéia de que uma mulher não possa tocar trompete e contrabaixo de forma adequada, fico pensando: o q este senhor pensaria sobre uma trombonista? Então deixo aqui duas sugestões:
1- ouça uma senhora chamada Melba Liston, é trombonista e arranjadora de mão cheia.
2- no caso do contrabaixo, realmente só me lembro de Esperanza Spaulding
Fora esta discussão de gêneros adorei o texto, parabens!
Ô¬Ô
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