15/06/2009

Hall's Family ou da redução do quantum despótico

Quando cheguei, vovó Tícia zangava com vovô Acácio. Fazia semanas ele prometera marceneirar alguns bilros em madeira sabiá e noz de tucum que, segundo ela, são os mais adequados para rendar. Na grama, o compasso amarelo do sol traçava generosa sombra sob a copa ancestral da quaresmeira roxa, debaixo da qual dormia Lester. Vovô estava na garagem, onde mantinha sua centenária mesa de marceneiro e suas ferramentas. Embora gastas pela insistência dos anos, ainda apresentavam bela aparência, com seus cabos de jacarandá escurecidos e conservados pelo suor do manuseio. O aço perdera o brilho incômodo, mantendo apenas a dureza necessária ao corte, compressão, tensão, flexão e torção, gerando aquele acomodamento de que lhe falara o velho amigo Pontes de Miranda, em seu clássico Sistema de Ciência Positiva do Direito, tomo III, página 56. Sim, vovô tinha a obra completa daquele mestre que, segundo ele, constitui um dos raros homens de gênio eleitos para a Academia Brasileira de Letras. De toda sua gigantesca obra, o conceito que mais fundamente influenciou vovô foi o do princípio da redução do quantum despótico, processo de acomodação e evolução pelo qual caminha a humanidade. Quanto à família, Pontes tinha lá suas ponderações e, na mesma obra, tomo I, página 307, cita as palavras de Ernst Mach: “Cada um de nós tem dois pais, quatro avós, oito bisavós, e, a continuar o cálculo para alguns séculos, chega-se a uma tão considerável população que nenhum país a poderá conter. Por isso que cada um não pode ter seus honestos ancestrais particulares, deve, forçosamente, haver parentesco entre os antepassados comuns, dos quais lhe é preciso aceitar as heranças psíquicas.” 

Lester, ainda sonolento e comendo um pedaço fumegante de bolo de laranja com grapete, aproxima-se e conclui que, então, somos todos parentes de Edward Hall, Sr., clarinetista nascido em 1875 na cidade de Reserve, Louisiana. Sim, é claro que somos todos parentes dele, confirmou vovô Acácio, contando que Edward pai tocou na banda Onward Brass Band, não a de New Orleans, mas a de Reserve. Produziu oito filhos, cinco dos quais se tornaram músicos profissionais. Edward Hall, Jr. (1905-?) tocou tuba em orquestras de dança. Robert Hall nasce em Reserve (1899-?) e, embora tenha começado com a guitarra, passa para o clarinete e os saxofones alto, tenor e barítono em diversas formações, entre elas as bandas de Hypolite Charles, Louis Dumaine, Gus Metcalfe e na famosa Original Tuxedo Orchestra, liderada primeiro por William ‘Baba’ Ridgley e, depois, por Papa Celestin, com quem grava em 1927. Clarence Hall (1903-?), também nascido em Reserve, começa tocando guitarra e banjo até que resolve dedicar-se ao saxofone. Após trabalhar com Kid Thomas, passa a integrar a banda do trompetista Kid Augustin Victor em Baton Rouge, atual capital da Louisiana e cidade onde se come atualmente um excelente filé no Chicago’s Steaks, Bar & Grill. Partindo para New Orleans, passa a trabalhar na banda de seu irmão Herb. Em seguida, integra a Original Tuxedo Orchestra de Papa Celestin para, mais tarde, associar-se à banda de Dave Bartholomeu, com quem realiza diversas gravações. 

Herb(ie) Hall (1907-?) também nasce em Reserve e inicia a carreira tocando banjo na Niles Jazz Band. Mais tarde, torna-se um competente clarinetista e saxofonista alto, substituindo o irmão Clarence na banda de Kid Augustin, em Baton Rouge. Seguindo para New Orleans, trabalha com Sidney Desvigne e Don Albert. Na década de 1930, parte com Don Albert para San Antonio, onde permanece até 1937. Segue então para Pittisburgh, Cincinnat, Cleveland, Philadelphia, New York e Boston, onde toca com Doc Cheatham. Em seguida, parte em turnê pela Europa com Sammy Price. Retornado aos EUA, passa algum tempo em New York, trabalhando nos clubes de Jimmy Ryan e Eddie Condon. E as turnês prosseguem, primeiro em Toronto, com Don Ewell, depois com a banda World of Jelly Roll, de Bob Greene e, por fim, pela Europa novamente, dessa vez como solista. Músico competente, com pleno domínio de seu instrumento e considerável inventividade melódica, Herb possuía tonalidade mais pura e estilo mais lírico que seu famoso irmão, também clarinetista, Edmond Hall (1901-1967). Nascido em New Orleans, é nessa cidade que inicia sua carreira profissional, tocando em uma série de bandas, entre elas a de Buddy Petit. Partindo para o norte, trabalhará em diversas bandas de swing, como a de Claude Hopkins e a de Teddy Wilson. Em 1942 é considerado bom o suficiente por Duke Ellington para substituir Barney Bigard em sua banda, mas descarta a oportunidade e resolve vencer por conta própria, fazendo grande sucesso no Café Society de New York, em 1944, fase em que grava com Eddie Condon. Na condição de mais festejado clarinetista do dixieland depois de Pee Wee Russell, Edmond preferia ver-se como um músico do swing, muito mais próximo de um Benny Goodman do que de um Johnny Dodds, genial clarinetista do estilo New Orleans. 

Seja lá como for – na verdade Edmond dominava plenamente tanto o blues quanto o jazz clássico e o swing – em 1950 estava tocando no clube de Eddie Condon e, em 1955, passa a integrar o All Stars de Louis Armstrong, além de seguir tocando como freelance até sua morte. Enquanto Lester lia e relia na velha Larousse quanta compressão, tensão, flexão e torção suporta um batiscafo – sim, Lester era absolutamente obcecado pelo estranho artefato marinho – vovô Acácio colocava no toca-discos as memoráveis gravações feitas por Edmond em 1941, com Meade Lux Lewis na celesta, Charlie Christian numa raríssima intervenção na guitarra acústica e Israel Crosby no contrabaixo. Essas e outras gravações históricas - ouça aqui Night Shift Blues - estão contidas no cd da Classics The Chronological Edmond Hall 1937-1944, verdadeiro documento do estilo New Orleans e local onde podemos constatar o estilo “cantante” de Edmond, com seu vibrato dirty e curto e sua inventividade nata. Nisso chega vovó Tícia, com seu café forte e sua mais nova renda de bilro.

8 comentários:

thiago disse...

clarinete sinistro

Érico Cordeiro disse...

A ceia na casa do Vovô Acácio e da Vovó Tícia devia ser deliciosa! Café forte, bolo de laranja e no gramofone um delicioso 78 RPM a espalhar as maviosas notas do fabuloso Edmond Hall.
Mr. Lester, nascido em berço tão esplêndido, vem honrando a tradição do seu (nosso) ancestral Edward Hall.
Seu (Nosso) primo Edmond tem um fraseado prá lá de melódico, dos mais interessantes, capaz de rivalizar com o não menos talentoso Buddy De Franco.
Belíssimo texto, belíssima música postada, belíssimo músico homenageado. Se alguém ainda duvida da importância do blues como principal ingrediente naquilo que se veio a chamar de jazz, basta ouvir esta soberba gravação.
Parabéns Paula!
Um cordial abraço a você e a toda a tripulação do jazzseen.

edú disse...

Segundo nosso amigo Beto Kessel, do blog Cjub,o programa Milênio da Globo News - canal 40,na Net em SP - estará discutindo hj, dia 15 às 23:30 se o jazz esta morrendo.Vale uma conferida.Ou a presença de um balão de oxigênio de prontidão ao lado do leito.

Érico Cordeiro disse...

Atenção tripulantes e passageiros da nave jazzseen: todos a postos em frente à máqquininha de fazer doido, pontualmente às 23:30.
Mr. Edú, folgo em vê-lo por aqui, mas tenho sentido a sua falta no JAZZ + BOSSA - parafraseando aquele antigo mandatário geral da república, "não me deixe só"!!!
Abração!

Salsa disse...

23:30h... Estará acontecendo o último set do jazz na curva da jurema. Se der, eu assisto.
Bluesão da melhor estirpe esse aí.
Valeu, Lester

Alexandre dos Santos disse...

Hoje (15/06) no programa Milênio da Globo News, às 23h30, o correspondente Lucas Mendes conversa com o crítico musical do New York Times, Ben Ratliff, sobre as transformações pelas quais passou o Jazz.

Mais no blog do programa:
http://especiais.globonews.globo.com/milenio

Pedro Garcia disse...

Diga aí, seu Salsa!

Cheguei por aqui agora e tomei um susto com a qualidade do blog. Mais ainda quando descobri que tocas aqui pertinho de casa.

Me diz: O Oleari ainda funciona? Quando? Onde?

Ávido por jazz de rua, despeço-me.

John Lester disse...

Prezados amigos, antigos e novos, o bolo acabou. O grapete não existe mais, creio. Só nos resta reduzir o quantum despótico através do jazz, esse fruto de gritos e suspiros desesperados.

23:30 então.