Reinaldo Santos Neves, presidente do Clube das Terças, marcou comigo encontro na face esquerda do Palácio Anchieta, quartel general do governo do estado. Exatamente às 17h estaria ali com minha encomenda, o álbum Return of Mel Powell, gravado ao vivo em 21 de outubro de 1987, no Floating Jazz Festival, que aconteceu a bordo do navio S.S. Norway, um desses gigantes que cortam o mar do caribe. Chegando mais cedo, perambulei por algumas das decadentes livrarias do centro de Vitória e constatei que, chegando ao local demarcado, havia ali uma estátua em bronze de silhueta bastante estranha: velha, cabelo emaranhado, recurvada, com um saco nas costas e uma acha na mão direita. Pensei, quem diabos é ela? Nisso, alguém me cutuca no ombro no exato instante em que o carrilhão da Catedral Metropolitana desanda a dobrar 17 badalos. Era Reinaldo, com um estranho envelope pardo sob a axila direita e um sorriso enigmático no rosto. E disse: então, Lester, você gostou da estátua da Mendiga Domingas? Antes que pudesse balbuciar palavra, Reinaldo prosseguiu: papai sempre nos trazia aqui, eu, João e Luiz Guilherme, para a missa das 7h na Igreja do Rosário. Não chegávamos a entrar para comungar. Cumprimentávamos o padre e ficávamos circulando pela Cidade Alta, ouvindo o cantarolar dos passarinhos e observando as lentas manobras dos navios que insistiam imensos em atracar no estreito canal de Vitória. Até que, numa manhã ensolarada, papai encontrou Maria Stella de Novaes fotografando a tal estátua. Ouvimos, todos atentos, as explicações da historiadora: pois é, Dr. Guilherme, veja só que belo monumento em bronze, sem nome, sem legenda, sem data. Sabemos apenas que foi executada por Carlo Crepaz, artista italiano radicado no Espírito Santo. Dizem que Dona Domingas teria sido escrava antes de se tornar catadora de papel e que, em 1950, já contava cem anos. Parentes não se sabe se os tem, salvo um provável neto no Morro do Pinto. Elmo Elton afirma que ninguém jamais a viu sorrindo, um tipo sisudo, feia, desdentada, lenta nos gestos e no caminhar, nunca era molestada pelos moleques tal o respeito que inspirava sua figura exótica. Também não se sabe quem mandou executar e quem pagou pela obra, verdadeiro contraste entre arte, mecenato e miséria. Ficamos, eu e Reinaldo, algum tempo em silêncio, observando Dona Domingas. Depois, conversamos um pouco sobre Mel Powell, um dos melhores pianistas do swing. Mel nasceu em New York no dia 12 de fevereiro de 1923, sendo vencido pelo câncer de fígado em 24 de abril de 1998, em Los Angeles. Aos dezesseis anos já estava na estrada, trabalhando com Bobby Hackett, George Brunis e Zutty Singleton, chegando a assumir como pianista do célebre clube Nick’s de New York e passar algum tempo com a banda relâmpago de Muggsy Spanier. Aos dezoito anos, com seu estilo tecnicamente apurado e eclético, chama a atenção do antenado Benny Goodman, que o contrata em 1941. Não bastasse ser excelente pianista, Mel ainda compõe e produz arranjos para a banda de Benny, como The Earl, Clarinet A La King, Jersey Bounce e Mission to Moscow. Após um curto período na CBS com Raymond Scott, em 1942 realiza sua primeira gravação como líder para, em seguida, prestar o serviço militar. Não tarda a integrar e a gravar com Glenn Miller’s Army Air Force Band, além de se apresentar em pequena formação com o conjunto Uptown Hall Gang. Após a guerra, Mel realiza algumas gravações com Benny Goodman, Louis Armstrong e Charlie Parker, bem como com Buck Clayton, Rubby Braff e Paul Quinichette na década seguinte. Depois disso, desaparece da cena jazzística, dedicando-se seriamente à música clássica. Estuda composição com Paul Hindemith em Yale, chegando mesmo a sucedê-lo na cátedra. Respeitado no meio acadêmico, assume como diretor do California Institute of Arts. Acometido por severa distrofia muscular, que limitaria gradualmente seus movimentos, felizmente não teve comprometida sua execução ao piano, o que lhe permite o retorno ao jazz após mais de trinta anos de afastamento. Para os amigos fica a faixa I Can’t Get Started , do álbum trazido por Reinaldo, onde podemos verificar que Mel continua com seu toque preciso e inventivo. Seus companheiros nas longas jams que compõem o álbum são Benny Carter (as), Howard Alden (g), Milt Hinton (b) e Louie Bellson (drums).
16 comentários:
Mr. Lester,
Uma resenha perfeita, à altura do homenageado - de quem, infelizmente, nada possuo, a não ser como sideman.
E que acompanhantes - um verdadeiro dream team!
Grande abraço!!!
Entre bispos, papas, políticos e vários outros de discutível índole, Domingas torna-se um oásis.
Dona Domingas existiu e eu a conheci. Tornou-se figura folclórica em nossa cidade. Separava e desmontava caixas de papelão para vender. Fazia este serviço na parte da tarde num espaço vazio em um corredor do prédio, no centro de Vitória, do Banco da Lavoura (hoje Real-Santander),entre os banheiros feminino e masculino. Muitas vezes deparavamo-nos com dona Domingas dentro do banheiro masculino, que era bastante amplo, separando e desdobrando suas caixas de papelão. Quando entravamos , meio constrangidos, e, antes que nos retirassemos pela presença dela ali, a velha Domingas sempre exclamava: "pode entrar menino, pode mijar". Verdade verdadeira, trabalhava no referido Banco e pude presenciar. Isto lá por meados de 1960. Quanto ao grande Mel Powell, com poucas gravações encontradas, resta-nos esse trabalho ao vivo "Return of Mel Powell". Boa pedida mr.Lester.
Pois é, John, mas a Domingas que se segure, pois a estátua de Araribóia, que ficava ali perto da Escola de Música, depois de ter seu arco e flecha roubados pro ferro-velho, anda em depósito incerto e não sabido. A memória, em Vitória, é pior que Alzheimer.
Claro que vou conferir a dica que veio por trás da Domingas. Suas dicas jazzísticas são sempre excelentes. Parabéns por mais um excelente texto.
Abraço do
Jimmy Green
Prezados amigos, obrigado pelos comentários, em especial o de de João Luiz, sócio fundador do Clube das Terças, que nos trouxe mais informações sobre Dona Domingas.
Grande abraço, JL.
acha sinistra
Prezado JL,
confira a cx q a de julho foi em pct completo.Abraço.
Gosto muito, beleza na madrugada ouvir Mel Powell e o "dream team",como disse Mr. Cordeiro...
Tanks!
Mr. Lester, dia 01 de agosto, no Canal Futura, documentário sobre Burle Marx.
Deve ser um disco da hora, valeu Lester!
Até que enfim um pouco de jazz nessa casa!!!
Que música excelente. Já fez o meu sábado!
Querido Lester, estive afastado um bom tempo e, felizmente, o Jazzseen continua o mesmo. Parabéns pelo sucesso do blog, cada dia melhor frequentado.
delicia...
Acho esse lance de jazz uma coisa tão impregnada de feromônios masculinos (sorry pela sinestesia), tão brutal, tão tesuda. Ai.
Dominique Blanche
Você anida não viu nada Dominiqui. Viu?
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