O trombonista Lawrence Brown considerava-se homem temente a Deus. Não bebia álcool, não fumava. Abominava a blasfêmia e desconhecia uso de palavras ou expressões profanas no trato social. Mantinha, por escolha própria, uma opção por vida sóbria. Esboçando, raramente apenas, um rascunho de sorriso nas ocasiões em que aproximava seus lábios na boquilha do trombone de vara, inflando as bochechas na articulação aveludada de sua sonoridade. Em razão desses monásticos hábitos, Brown era apelidado por seus colegas músicos como: o reverendo, diácono ou pregador. No entanto, a ordem diocesana que Brown abraçou na vida por mais de trinta anos – em períodos alternados - recebia orientações canônicas não na forma de súmulas, mas na contagiante alquimia de ritmos, sons e timbres proveniente de um seleto grupo de músicos fenomenais. Não era obra de um religioso. Mas de um nobre – não de direito, mas de fato chamado Duke Ellington. Lawrence Brown serviu na orquestra de Duke por três décadas. Se um homem jamais deve servir mais que um deus na vida optou por essa escolha de forma antecipada em 1932 e a abandonou em 1970. A gênese dessa experiência pessoal tem ponto de partida na década de vinte. Tem como figura central o trombone, instrumento de sopro que tinha uma função quase que burlesca na música popular americana. Geralmente era uma “câmara de eco” para humoristas ou comediantes sublinharem suas tiradas no teatro vaudeville. O instrumento produzia efeitos sonoros como os de buzina, sensação de medo, ironia e, grotescamente, qualquer ruído que o organismo humano produz em desconforto. Segundo o critico R.D. Darrel, o solo do trombonista Joe “Trick Sam” Nanton em “Black and Tan Fantasy” - pela mesma orquestra de Ellington – era comparável a um relincho de cavalo ancião. Em 1929, o trombonista Juan Tizol ajuda a reparar esse descrédito entrando no grupo durante sua temporada no Cotton Club. Tizol, de sua parte e ao trombone de válvula, fazia o contraponto de forma lírica e refinada ao vocabulário rústico de seu colega Nanton. Com a entrada posterior de Brown no grupo, a trinca de trombones se solidifica trazendo com o novo trombonista um som volumoso que combinava admiravelmente a virtuosidade com certo conteúdo sentimental. Sua especialidade era a balada romântica como “Stormy Weather” ou “Sophisticated Lady” ombreando-se, logo, às maiores estrelas da orquestra na época como Coleman Hawkins ou Fletcher Henderson. Nascido em 3 de agosto de 1907 no Kansas, Brown recebeu educação musical em diferentes escolas e localidades. Essa vida semi nômade permitiu que aprendesse diversos instrumentos: o piano, a viola, a tuba e o sax alto. O frequente rodízio de lares e mestres tinha motivo pela intensa atividade religiosa paterna: seu pai era ministro da Igreja Episcopal. Sua primeira apresentação em público, por isso, foi perante a 6 mi l fieis na Aimee Semple McPherson´s temple em Los Angeles num dia das mães. Experiência essa aterradora aos olhos inocentes daquele jovem músico iniciante. Dividindo a mesma opção austera de hábitos e costumes de seu pai – pessoa rigorosa que bania até mesmo o consumo de café na casa - Brown aprendeu que a porta do lar era a serventia da casa ao receber sua desaprovação ao revelar-se músico de jazz. A única opção que lhe restara foi trabalhar com as big bands de Charlie Echols, Paul Howard e Les Hite. Em 1930, Lionel Hampton e Louis Armstrong “estagiam” um tempo obedecendo a batuta de Hite. Louis aproveita e grava quatro takes com o suporte do grupo. Esse período foi uma espécie de epifania para Brown. Mesmo com admiração declarada pelos trombonistas Miff Mole e Tommy Dorsey o contato pessoal e principalmente musical com Armstrong “foi a verdadeira lição que recebeu na vida”. Aos 24 anos e por indicação de Irving Mills, agente de Duke Ellington, é contratado pelo patrão pelo espaço de décadas. Na primeira, até 1951 e retorno em 1960. Depois, até sua aposentadoria em 1970. Após sua retirada final, Brown recebeu, em 1985, o escritor e editor do The Duke Ellington Reader - Mark Tucker. Nessa entrevista final surgiram algumas surpresas amargas em suas reminiscências nada nostálgicas. Mesmo abatido pela morte do amigo Juan Tizol, um ano antes, Brown recusou-se a glamurizar a vida de músico e sua aliança com Ellington. Mesmo sua entrada no conjunto, na sua opinião, foi o maior equivoco que cometera na vida. Era um meio de sustento, nada admirável, na sua opinião. Rompeu até mesmo o voto de não proferir impropérios ao referir-se ao agente de Duke – Irving Mills. ”Um escroque do mais baixo nível”, segundo seu conceito. O próprio Ellington recebia o desabonador rótulo de “egomaníaco, explorador e sedutor de mulheres”. Devemos dar o devido desconto nessas afirmações pelo fato de Duke – mulherengo incorrigível - retirar seus dedos e mãos na condução da orquestra, em certos momentos, para dirigi-las, desobedecendo ao nono mandamento, às curvas da ex-mulher de Brown – a atriz e dançarina Fredi Washington. A magoa maior ficaria, no entanto, para a venda, segundo ele, do tema Sophisticated Lady (em parceria com o saxofonista Otto Hardwicke). Por uma quantia de 15 dólares cada, essa jóia musical foi penhorada, na versão de Brown, entrando na lista de composições pessoais de Ellington. Para nós o que resta é o importante legado desse músico, morto em 5 de setembro de 1988, que dignificou seu instrumento assumindo, quando exigido, irrepreensível postura profissional mesmo à custa de longos momentos de contrariedade e arrependimento. Deixo em sua homenagem e para audição dos visitantes o tema “Round the Corner Blues” – uma espécie de sermão musical na forma “sacolejante” do blues de autoria de Lawrence Brown com o próprio ao trombone, Sam “The Man” Taylor (sax tenor), Leroy Lovett(piano e voz), Lloyd Trotman (baixo) e Louie Bellson (bateria) retirada do único trabalho autoral de Brown lançado na forma de cd – Slide Trombone (selo Verve) gravado no ano de 1955.
12 comentários:
Mestre Edù, obrigado por mais uma santificada resenha.
Depois dizem que eu implico com Miles e Ellington. Que Deus os perdoe, mas não troco meio Lawrence por Miles e Ellington juntos.
Grande abraço e parabéns pela excelência da faixa.
JL
Lester, Lester,
Não blasfeme! A voz de LeRoy parece com de Mose Allison
Seu Mr. Lester,
Salsa tem razão. A penitência: ouvir Bitches Brew 500 vezes, em genuflexão!
E, Seu Mr. Edú, é por essas e outras que o considero o Raffaelli da nossa geração - parabéns pela resenha, pelo músico enfocado e pela faixa postada (de fato, um blues de primeiríssima).
Oremos!!!
edu,
valeô o post...e o sonzão trombonístico...rs
desconhecia a estória do instrumento...aliás,antes de se botar ordem no coreto,acredito que o lance era mesmo o entretenimento, não é verdade?
agora,
identifico-me com o perfil de mr.lawrence brown, apesar de não ser regilioso, sigo os mesmos mandamentos...e a convivência musical não é bem por aí, não é mesmo?
abraçsonoros
namaste
Gostei!
Lawrence, Leroy (com sua voz...),sax, baixo, bateria,tudo! Muito!Ouvi n vezes...
Belo texto edu, eu nao sabia que ellington era assim tao canalha...
Ellington era genio e, assim, podia pisar em quem quisesse. Strayhorn que o diga...
Parabens,Edú.
Gostei muito do texto e da historia .
Quanto a questões ligadas a carater acho melhor não ir adiante pois restariam muito poucos na historia do jazz. Fiquemos com a musica.
Abraço
Meu querido JL, obrigado por sua generosidade e carinho.
Grande abraço.
Parabens ao edú pela resenha; e estou com o Tandeta:
"fiquemos com a música".
Prezado Èrico e amigos, continuo o mesmo moleque q insistentemente participava calado e de audição desobstruída às reuniões de apreciadores de jazz somente com adição de alguns fios brancos invadindo meus cabelos e o bigode estilo "magnum" conservado mesmo no antagonismo da moda.Das lições q recebi no transcorrer dessas duas décadas e q :entre o homem e o mito – não relute à preferir o segundo.
trombone nefasto
Postar um comentário