21/10/2009

King of Swing - Parte I

Após trabalhar 12 horas diárias retirando banha da gordura das carcaças de animais mortos num frigorífico, o imigrante polonês de raízes russas, David Goodman, nem precisava bater com força extra à porta de entrada do lar para anunciar sua presença. Por mais que seus doze filhos estivessem dormindo naquele horário da noite ou fingindo sono. David, sem intenção, espalhava no ambiente o odor de suor do intenso cansaço físico impregnado aos restos de carne, ossos e sangue. Provocando o desagradável cheiro que transpirava pelos poros e infestava o cômodo. Para seu filho Benjamin David – nono na escala da dúzia – não haveria cheiro mais insuportável que aquele. Se houvesse também outra sensação na vida deveria ser diferente do ronco de fome na barriga e que perturbava sua tentativa de dormir. E mesmo pressionando com firmeza seus olhos na penumbra, haveria, certamente, outro ambiente melhor que os diversos cortiços que a família se instalava desde que se conhecia por gente. Apenas um caminho levaria distância daquele emaranhado de dificuldades e desesperança. Indicava um sentido a seguir: ser um sucesso na vida. Benjamin David Goodman, nascido em 30 de maio de 1909 em Chicago, não se dirigia à sinagoga apenas para orar e cumprir o rito de judeu praticante. Seu pai percebeu que mesmo a pesada custa de cinqüenta centavos, dos cinco dólares do salário mensal, valia à pena investir nas aulas de música para os filhos. Jovens de incipiente preparo musical recebiam uns cobres tocando em ocasiões festivas nos subúrbios de Chicago. Assim o menino Benjamin – que o jazz viria a coroar como Benny Goodman – aos 10 anos de idade, recebia aulas de clarineta na Kehelah Jacob Synagogue visando formar um grupo juvenil chamado Jane Addam´s Hull House. Como se revelou logo um talento promissor foi adotado para ensino pelo clarinetista clássico Franz Schoepp. Aos treze anos de idade se desconhecia em Chicago jovem com imenso talento no instrumento e facilidade absoluta em imitar seu ídolo, o clarinetista Ted Lewis. Com catorze obtém a carteira do sindicato dos músicos tamanha evolução do aprendizado, sendo contratado adolescente pela banda de canções populares do baterista Ben Pollack pelo salário de quinze dólares mensais: três vezes mais do que seu pai recebia no abatedouro. Mesmo sendo a segunda figura mais importante naquele grupo, o adolescente Benny trazia fama de arrogante e indisciplinado e sem insegurança alguma de ser despedido. Era responsável pelo sustento dos onze irmãos e a mãe já aos catorze anos de idade, em virtude da trágica morte prematura do pai, atropelado por um táxi. No período dos quatro anos de convivência no grupo de Pollack faz suas primeiras gravações com os colegas e jamais solicita qualquer colaboração do baterista para tanto. Após ser repreendido pelo uso de sapatos mal engraxados encontra motivo para dar adeus ao grupo. Nos cinco anos seguintes Benny torna-se um solicitado músico “free lance”, identificado como virtuose, em razão da magistral sonoridade que extraía da clarineta que soprava sem dificuldades tanto nas regiões graves ou agudas em qualquer tempo, velocidade ou ritmo.

Em 1929, morando em Nova Iorque, participa de programas radiofônicos e toca com Red Nichols, seu ídolo Ted Lewis, Paul Whiteman e na orquestra dos musicais da Broadway - Strike Up e Girl Grazy. Nas horas livres frequenta sem cautela ou medo as boates do Harlem durante as madrugadas para assistir as bandas de Fletcher Henderson e do baterista Chick Webb ou levar Billie Holiday para a cama depois de seu set. Em 1933 o empresário Billy Rose, em resposta à suspensão da Lei Seca, inaugura uma boate para mais de mil freqüentadores e precisa de uma banda de porte para animar o empreendimento. Para o ambicioso jovem Goodman era, enfim, a oportunidade da vida. Forma um grupo de doze figuras e instaura um clima ditatorial e rígido na gestão dos colegas músicos que revela sua personalidade. Para alguns: complexa. Outros, tirânica. Nem tão isentos, simplesmente abominável. Benny proibia o fumo, mascar chicletes, cruzar as pernas no palco. Atitudes incompreensíveis num meio profissional em que muitos, na maioria dos casos, tinham como melhor amizade o “cachorro” engarrafado por doze anos na Escócia. Caso alguma decisão fosse contrariada seu olhar sobre a armação ovular das lentes era apelidada de raio – antecipando a dispensa. A música que o grupo de Goodman executava no Rose´s Music Hall começou a ser transmitida ao vivo pela cadeia de rádios da NBC como forma de promoção da casa. Pelos índices de audiência, a NBC vende à Nabisco a idéia do patrocínio de um programa semanal de três horas chamado “Let´s Dance” (vamos dançar) com três bandas diferentes tocando 3 estilos de música ao vivo por exatas uma hora cada: a valsa, a rumba e o estilo que antes mantinha-se restrito às comunidades negras e que se convencionou chamar de swing pelo frenesi e entusiasmo com que mandava os casais esbaldarem- se na pista de dança. O swing já era executado pelos grupos de Cab Calloway, Don Redman, Erskine Hawkins e Duke Ellington – todos líderes negros e impedidos de tocar, pela segregação racial, em lugares da chamada elite nos anos 30. Distante de ativista social e não apenas exímio clarinetista, Benny era hábil na identificação de brilhantes músicos (independente da raça ou credo) como os pianistas Teddy Wilson e Mary Lou Williams, o saxofonista Benny Carter, o vibrafonista Lionel Hampton, o baterista Gene Krupa e o trompetista Harry James.

Na opinião da cantora Mildred Bailey, amiga de Benny e negra, a banda, naquela ocasião, era incapaz – por inexperiência e ausência de personalidade - manter uma hora de interesse da audiência pelo prazo de várias semanas – a duração do contrato com a NBC. A solução sugerida pelo cunhado do clarinetista - John Hammond (descobridor de Billie Holliday e Count Basie e membro da aristocracia financeira estadunidense) foi comprar o songbook de arranjos do band líder Fletcher Henderson que sofria – apesar de chefiar o melhor grupo organizado de músicos do mercado nova iorquino - a discriminação racial e os efeitos desastrosos de uma nação empobrecida dia a dia pela recessão econômica. Para Henderson não foi necessário engolir a seco a vaidade. Além de ser bem pago pela cessão dos arranjos, foi contratado como diretor musical para escrever novos e, o mais importante, sua música seria afinal conduzida para uma grande audiência. Se o costume de reunir a família para freqüência aos cultos religiosos nos domingos era sagrado, no sábado à noite, reunia-se novamente ela em torno do aparelho de rádio para ouvir música. Num período pré-histórico à banda larga e às malhas da internete se disseminava nas ondas da radiodifusão acordes, notas e o balanço contagiante do swing pelos limites de um país inteiro. Nos intervalos de Let´s Dance, a maioria dos músicos de Benny descansava seus instrumentos nas estantes e estojos. Surgia – quase do nada - uma pequena “costela” do grupo: uma trinca formada por Benny, Krupa e Teddy Wilson com seus respectivos instrumentos. Na disfarçada intimidade do envidraçado estúdio exerciam a coesão musical de idéias que faziam desnecessária qualquer carga adicional de naipes e palhetas. A banda de Goodman – através da sensação das ondas radiofônicas – causava a impressão de um vigoroso avião, solidamente construído, capaz de atravessar o horizonte aproximando às extremidades de leste à oeste. Essa pequena trinca – de dois brancos (Benny e Krupa) e um negro (Wilson) - dialogava em alto nível nos seus instrumentos em absoluto pé de igualdade. Causando, nessa particular experiência do trio, a impressão de que se caminhava sobre as nuvens ao sentir o efeito que sua música trazia. Essa minúscula solução prática, mas de retumbante efeito, mais tarde foi ampliada na forma de quarteto até chegar ao limite de sexteto. (Fim da primeira parte de King of Swing). Para os amigos visitantes deixo a faixa “Everything I Got Belongs to You tema de Richard Rodgers e Lorenz Hart com Goodman (cl), Mel Powell (p) e Eddie Grady (bt), gravada no Riverside Plaza Hotel em Nova Iorque no dia 28 de janeiro de 1954.

13 comentários:

John Lester disse...

Prezado Mestre Edù, contrariando os sábios ensinamentos de Anaximandro, você demonstra que as resenhas podem, sim, ter princípio e fim. Aguardamos ansiosos a King of Swing Part II que, certamente, iluminará nossas escassas noções sobre o swing e o ápeiron, conceitos de envergada complexidade.

Grande abraço, JL.

figbatera disse...

Boa, edú, um show de resenha!

Érico Cordeiro disse...

Grande Seu Mr. Edú,
Inpiradíssimo e um tanto quanto poético.
Uma resenha à altura da grandeza do pai fundador Benny Goodman.
Aguardemos o desfecho dessa história que retrata muito bem o "Sonho Americano" (é, os sonhos às vezes se tornam realidade!!!).
Abração!!!!

Salsa disse...

Pô, Edú,
Mandaste bem. Texto muito bom de ler - e olha que eu ando com uma preguiça daquelas. Benny merece.
Confesso que, no nício, pensei ser um texto do Lester (devido as imagens carregadas de boa dose de ironia e humor negro - enfim, a dupla de redatores é do barulho).

Celijon Ramos disse...

Também gostaria de parabenizar ao Edú pela riqueza de detalhes da vida desse excelso músico que é Benny Goodman.
Ao meu caro John Lester, gostaria de dizerque para mim foi um enorme prazer receber sua visita e saber que acompanha meu blog. Jazzseen é uma referência que acompanho já há anos.
Sou suspeito para falar de Mr. Cordeiro, mas acho, e já disse a ele, que já está na hora de construir um projeto para a publicação de um livro reunindo todos os artigos que tem gerado no Jazz+Bossa... Conselho este que estendo a você e a todos que o alimentam com seus textos , afinal Jazzseen produz análises ricas e profundas sobre o mundo do jazz. Seria um prazer ver publicado esses livros, além de permitir o acesso a muitas pessoas que não tem o hábito que frequentar blogs. Estariam desse modo ajundando a formar opnião e público para o jazz.

Um grande abraço!

APÓSTOLO disse...

Prezado EDÚ:

Resenha que nos faz acompanhar os fatos como se "ao vivo" fossem.
Parabéns e muitos, que você merece á altura do talento do "King Of Swing", mestre maior no clarinete, no comando férreo de sua "big band", nos solos perfeitos tanto no JAZZ quanto nos clássicos.
Aguardamos a 2ª parte.

Paula Nadler disse...

Nossa, se vovô Acácio estivesse por aqui, certamente tocaria sua clarineta em homenagem ao Edu. Excelentes, resenha e música. Parabéns!

edú disse...

Caros amigos,

esse texto celebra meus dois anos de Jazzseen.Poderia escolher outro personagem mas não tão privilegiada e honrosa companhia : dos nossos amigos e visitantes.

Caro Salsa,

continuo capengando no dente de leite e instruindo-me com os mestres do oficio e da vida.

Caro JL,

o capitulo final da saga foi pra cx.

Frederico Bravante disse...

Prezados leitores,

Depois do couro de tambor de congo, o aroma que mais nos amedronta aqui no Jazzseen é o exalado pelos macacões de frigorífico. Natural, portanto que Benny tenha aprendido tão rapidamente a clarineta para sair de casa.

Guardadas as proporções, foi ao cheirar um tambor de congo que Lester aprendeu, aos dois anos de idade, a tocar a rabeca em poucas semanas.

A terceira é o de quimono de judô usado.

Belíssima resenha Edu, parabéns.

Salsa disse...

Bravante segue a verve jazzseeniana. Rs

pituco disse...

mr.edú,

texto piramidal...

lembro-me que lá em casa,nos tempos idos de minha primeira infância,meu pai botava pra rolar um bolachão do rei do swing,contrariando os acetatos eruditos de meu avô...era uma discussão danada...rs

resgate bacanudo
abraçsons pacíficos

thiago disse...

clarineta nociva

edú disse...

Caro JL,

mandei novamente.Espero,agora ,sem surpresas.Obrigado pelo aviso.Abraço.