26/04/2010

A insuportável leveza do ser

Se John Lester não resolvesse comentar, eu nunca saberia que o terceiro país mais alto da Europa era a Espanha, minha terra natal. Seus 600m de altitude média são ultrapasssados somente por Suíça e Áustria que, vocês sabem, são países alpinos. E isso é bom para os vinhos, resmungava Lester enquanto caminhávamos pelas calcáreas trilhas de Montsant, região de Tarragona, vizinha do Priorato. Montsant está situada na Cataluña, sendo uma de suas DO (Denominación de Origen). Sim, na Espanha temos a seguinte classificação para os vinhos:

1) Vino de Mesa (VM), é o mais simples, equivalente ao Vin de Table francês - não pode indicar no rótulo safra nem uva; 2) Vino de la Tierra (VdlT), é um pouco melhor que o Vino de Mesa, mas sem guardar pretensões mais sérias de qualidade - equivale ao Vin de Pays francês; 3) Vino de Calidad con Indicación Geográfica (VCIG), terceiro degrau de qualidade, deve manter-se cinco anos nessa classificação para que possa reivindicar a DO - equivale ao Vin Delimité de Qualité Supérieure francês; 4) Denominación Específica (DE), invenção da legislação espanhola pouco utilizada na prática, baseada no método de produção, que deveria ser aplicada aos espumantes, tais como Cava e Granvás - atualmente, essa classificação não mais existe na legislação espanhola e todo Cava equivale a um DO; 5) Denominación de Origen (DO), abrange a maioria dos vinhos espanhóis de qualidade, sendo equivalente à italiana Denominazione di Origine Controllata; 6) Denominación de Origen Calificada (DOCa), honraria concedida a vinhos de qualidade excepcional, equivalente à italiana Denominazione di Origine Controllata e Garantita - somente Rioja e Priorato a detêm; 7) Denominación de Origen de Pago (DOP), outra invenção espanhola, destina-se a vinhos produzidos em pequenas propriedades, cujas características de clima e solo conferem personalidade única ao vinho ali produzido.

Pois bem. Paramos numa taberna simples e acolhedora da região, na expectativa de descansar e beber. Foi grande a surpresa quando percebemos que a música ambiente era Ted Curson. Animado, Lester resolveu abrir uma garrafa de Flor de Englora 2006, um belo corte com 63% de Red Grenache, 32% de Carignen, 2% de Merlot, 2% de Syrah e 1% de Ull d'llebre, produzido pela Cellers de Baronia, localizada em Montsant. Apesar do envelhecimento em inox, recebeu 92 pontos de Robert Parker, um confesso admirador do envelhecimento em barricas de carvalho, responsável em boa parte pelo potente estilo californiano. Enquanto apreciávamos o solo de Herb Bushler ao contrabaixo, Lester afirmou que certamente foram lançadas lascas de carvalho francês aos tanques de inox que acolheram o interessante vinho, prática que, embora seja condenada veementemente por alguns ortodoxos, inegavelmente concede caráter e timbre ao tinto espanhol de preço bastante honesto: R$50,00 na Casa Bonita. Mordiscando uma torrada encharcada em azeite nativo, Lester disse nunca compreender a crítica quando atribuía à música de Ted um caráter abstrato e incompreensível: trata-se, dizia Lester, de um Hard Bop da melhor qualidade, claro que com um tempero de liberdade e experimentação que, se não chega a Avant Garde propriamente dita, aproxima-se bastante do melhor jazz produzido na década de 1960, como, por exmplo, o de John Coltrane.

Ted Curson nasceu em 3 de junho de 1935, na Philadelphia. Aos 12 anos, já tocava em festas e, após algumas aulas com o saxofonista Jimmy Heath, parte para New York, onde trabalharia com excelentes músicos, entre eles Mal Waldron, Red Garland e Cecil Taylor. Entre 1959 e 1960, Ted integra o grupo de Charles Mingus, período em que atua ao lado de músicos como Eric Dolphy, Booker Ervin, Yusef Lateef e Joe Farrell. Em seguida, Ted forma seu próprio conjunto, ao lado do saxofonista Bill Barron, com quem grava Tears For Dolphy, em 1964. Após trabalhar com Max Roach, em 1965 Ted parte para a Europa, atuando na Dinamarca, França e Suíça, onde integra a orquestra Zurich's Playhouse. Na década de 1970, Ted divide-se entre Paris e New York, trabalhando com diversos músicos, entre eles Andrew Hill e Kenny Barron. Interessado na divulgação do jazz, Ted apresenta-se e participa de workshops em diversas universidades, entre elas a UCLA, a University of Vermont e a Vallekilde Music School, na Dinamarca. Além de apresentar um programa de rádio na década de 1980, Ted continua atuando e gravando, sempre com sua técnica impecável e seu fraseado veloz e complexo. Para os amigos fica a faixa East 6th Street, retirada do álbum Tears For Dolphy. Com ele estão Bill Barron (ts), Dick Berk (d) e Herb Bushler (b). Saúde!





7 comentários:

Salsa disse...

Encarei um Tempranillo Rioja na semana passada. Também fiquei feliz com um Tannat - Cuna de Piedra.
Ambos harmonizariam bem com Curson e uma carne suculenta.

John Lester disse...

Prezado Mestre Bravante, obrigado pela bela narrativa.

E, Mestre Salsa, feliz retorno ao virtua.

Grande abraço, JL.

Érico Cordeiro disse...

Mr. Bravante,
Uma resenha, por assim dizer, deliciosa. E ao som do trompete de Curson e do sax de Barron (um unsung hero típico), o Flor de Englora 2006 fica ainda melhor.
Sobre o Ted, publiquei uma breve resenha no jazz + bossa (o disco era o Plays Fire Down Below):
http://ericocordeiro.blogspot.com/search/label/Ted%20Curson
Abração!

APÓSTOLO disse...

Prezado BRAVANTE:

Delícias que a boa terra catalã (onde tive o prazer de trabalhar e residir na década de 1960) sempre nos reserva.
Símbolo maior, ao lado da vascongada, da resistência anti-franquista ("caudillo de España por la gracia de Diós", e põe messianismo canalha nisso), a cataluña é o palco do melhor.

HotBeatJazz disse...

Ô¬Ô

Amigo Bravante,

como bem disse Érico, uma delícia de resenha, aos tímpanos e ao palato. Um breve conselho, pegue outra botilla e dê uma pulo em Valencia, lá chegando procure por um tal de Perico Sambeat, vais adorar o sax alto um tanto ácido, com cortes de McLean e Woods em proporções equivalentes.

Abraços

Ô¬Ô

figbatera disse...

Hum, que delícia!

Paula Nadler disse...

A Espanha é uma delícia, não é?

Beijos!