Tudo corria bem durante nossa última reunião do Clube das Terças até que Dr. Frutuoso, o mais novo sócio do clube, retira de sua maleta preta um estetoscópio, dois bisturis, um volume com as poesias completas de Cruz e Souza e um imenso envelope de radiografia de tórax contendo dois pequenos objetos não imediatamente identificados, e pergunta: qual o primeiro livro de jazz escrito por um brasileiro? Como quem não quer nada, Reinaldo finge estar distraído e segue em direção ao lavabo. Rogério, fitando o novo sócio por cima dos óculos, batuca calmamente sobre a mesa, dando a impressão de que a pergunta de Dr. Frutuoso é, no mínimo, elementar. Chico, o maior especialista em sebos do Espírito Santo, termina de beber seu terceiro litro de água mineral gasosa e coça a cabeça, como que empurrando a memória, e diz: já estive com esse livro na mão! Era uma capa preta, com letra vermelha, eu acho. João Luiz, sem conseguir esconder um certo ar de satisfação sob a sobrancelha impecável, afirma: o primeiro livro brasileiro de jazz é Jazz Panorama, escrito por Jorge Guinle e publicado em 1953 pela editora Agir! Sorrindo sempre, Dr. Frutuoso limita-se a perguntar "tem certeza disto?". Nesse instante, aproximam-se John Lester e Tobias Serralho, confabulando animadamente sobre o sucesso de vendas do livro Confesso que ouvi, lançado por Érico Cordeiro, em Vitória. Quando souberam do enigma proposto por Dr. Frutuoso, entreolharam-se, como que concedendo um ao outro a oportunidade de esclarecer a questão.
Foi então que Tobias nos contou da existência do livro Pequena História do Jazz, escrito por Sérgio Porto e publicado também em 1953, pela Imprensa Nacional. Assim é que, disse o amigo maranhense, nunca saberemos ao certo qual o primeiro livro brasileiro sobre jazz. Lester, então, intervém, lembrando que, na introdução de Jazz Panorama, Vinicius de Morais afirma que o trabalho de Guinle é pioneiro no Brasil. Sem afastar a invencível credibilidade do poetinha, Tobias faz registrar em ata que, na introdução da Pequena História do Jazz, Sérgio Porto afirma que "este pequeno trabalho é o primeiro que se faz no Brasil".
Nesse instante, aproxima-se André, o mais enciclopédico dos sócios. Informado em detalhes sobre o acirrado embate, confirma que, salvo novas provas, ninguém sabe ao certo qual dos dois livros foi publicado primeiro. Mas ressalta a semelhança forte entre os dois trabalhos: ambos traçam um breve histórico sobre as origens do jazz, as primeiras influências das work songs, dos spirituals e do blues. Os dois falam sobre os três primeiros grandes estilos do jazz: o New Orleans, o Chicago e o Swing. E, também nos dois casos, terminam suas anotações falando sobre os estilos Bebop e Dixieland (chamado de Renascença). Poderíamos, continuou André, afirmar mesmo uma certa identidade estrutural: ambos apresentam algumas fotografias - sendo que, nos dois livros, aparecem fotos de Jelly Roll Morton e Louis Armstrong; ambos apresentam informações bibliográficas e recomendações discográficas.
John Lester, então, observa que Sérgio Porto confessa explicitamente em sua obra ter utilizado fartamente as informações constantes do livro Estética del Jazz, escrito pelo musicólogo argentino Néstor Ortiz Oderigo, um ferrenho tradicionalista que via o Bebop como verdadeira aberração musical. A influência de Oderigo sobre Sérgio Porto é flagrante, sobretudo nas passagens em que o brasileiro analisa o Bebop. Leiamos alguns trechos:
"Os solistas do be bop, nas suas execuções, sacrificavam, não só o swing - aqui empregado na sua verdadeira significação - como também a melodia de seus coros, que são tocados a toda velocidade, num afã de alinhar notas e diminuir as quintas, pelo puro prazer do virtuosismo. Com esse processo, sem dúvida mais original do que melódico, resulta profundamente monótona a execução".
"Não só a melodia e o swing são sacrificados na escola que abordamos. A improvisação e o ritmo também, longe estão de se enquadrarem dentro das características do jazz".
Segundo Sérgio Porto, os solos individuais do Bebop não correspondem "aos verdadeiros anseios do jazz, que requer a improvisação coletiva". Afirma ainda que o ritmo sofreu profunda deturpação; que a guitarra tornou-se dispensável; que a bateria, "ao invés de ocupar-se da pulsação - verdadeiro mister da bateria e da qual depende o eixo do solista - torna-se independente, não havendo nenhuma relação entre o baterista e o músico solista". "O apoio daquele à improvisação deste, resume-se numa série infindável de breaks que, diga-se de passagem, são perfeitamente dispensáveis". Atingindo os limites da ortodoxia, Sérgio diz:
"Creio que não seria demais afirmar que o instrumento de percussão, tocado como está sendo no bop e tocado como deve ser no jazz, torna-se o mais eloqüente exemplo de que uma música não tem nada a ver com a outra" e
"Ao invés de encontrar novos caminhos para a música de jazz, conforme fora a intensão (sic) no início do movimento, o be bop criou uma outra expressão musical, completamente diferente do jazz, em suas características básicas".
Coitado do Parker, resmungou Fernando Achiamé boquiaberto com as esmagadoras críticas de Sérgio ao Bebop. Ato contínuo, João Luiz II coloca a faixa Just Friends , gravada por Charlie Parker em 1951, no Birdland, com Walter Bishop Jr. (p) Teddy Kotick (b), Roy Haynes (d) e orquestra, perguntando: será que Sérgio ouviu esse álbum?
Enquanto as luzes do shopping se apagavam, Lester completou suas impressões sobre os dois livros, advogando a favor de Guinle. Filho de 2 bilhões de dólares, o maior playboy do Brasil esteve lá em New York quando o Bebop nasceu, ao lado de gente como Charlie Parker e Dizzy Gillespie. Sua visão do todo - vale lembrar que assistiu ao vivo também gente como Louis Armstrong, Duke Ellington, Billie Holiday - é mais ampla e mais vívida, sem deixar-se impregnar pelos preconceitos que o novo costuma engendrar nas mentes menos flexíveis. E, tanto em quantidade quanto em qualidade de informações, Guinle apresenta o livro mais completo.
Finalmente, Dr. Frutuoso abre o tal imenso envelope, retirando de lá um raro exemplar da Pequena História do Jazz e uma saborosa barra de rapadura, repartida fraternalmente conosco.
Enquanto as luzes do shopping se apagavam, Lester completou suas impressões sobre os dois livros, advogando a favor de Guinle. Filho de 2 bilhões de dólares, o maior playboy do Brasil esteve lá em New York quando o Bebop nasceu, ao lado de gente como Charlie Parker e Dizzy Gillespie. Sua visão do todo - vale lembrar que assistiu ao vivo também gente como Louis Armstrong, Duke Ellington, Billie Holiday - é mais ampla e mais vívida, sem deixar-se impregnar pelos preconceitos que o novo costuma engendrar nas mentes menos flexíveis. E, tanto em quantidade quanto em qualidade de informações, Guinle apresenta o livro mais completo.
Finalmente, Dr. Frutuoso abre o tal imenso envelope, retirando de lá um raro exemplar da Pequena História do Jazz e uma saborosa barra de rapadura, repartida fraternalmente conosco.
26 comentários:
Muito, muito bom!
Demorou mas valeu...Deliciosa resenha, Mr. Lester!
Bacana, como sempre. Porto e a fonte portenha, de certo modo, perceberam bem as alterações impostas pelo bop. O problema é que eles achavam que a música deveria ficar imobilizada. O mesmo faz nosso amigo João, um dos defensores de que o jazz morreu no final dos anos 50.
Fiquei curiosa em conhecer o livro do Sérgio. E triste em saber que um de meus cronistas prediletos era tão cheio de restrições ao bebop. Beijo!
Acho que Sergio Porto, genial cronista, "incorporado" de Stanislau Ponte Preta deve ter falado mal do bebop numa demonstração de implicancia com o Primo Altamirando, o Mirinho. Implicancia que se devia ao gosto de Mirinho por substancias psicotropicas proibidas por lei. Como Charlie Parker tinha ,fora da musica, o seu lado Mirinho,Sergio Porto resolveu desancar um pensando no outro.
Meu Caro Lester,
Bom saber que o Clube das Terças expande seus tentáculos, agora com a presença excelsa do meu querido tio Frutuoso. O Maranhão está bem representado na parada, com o Tobias e o meu tio!
Espero um dia poder participar de uma dessas agradáveis reuniões!
Abração e belo texto!
Paulinha, um grande beijo pra você, para inveja dos marmanjos que não tiveram a oportunidade de papear por quase quatro horas seguidas com seus belos olhos verdes!
O Andre Tandeta lembrou bem...havia, sim, esta "implicancia" do Stanislau ( Stalislaw ? )com o primo Altamirando, mas parece que era por causa da disputa pelos carinhos da Tia Zulmira...em rela(ss)ao aos psicotropicos, ele nao era assim tao redical...
...radical
Caro Lester,
Inicialmente obrigado pela deferência em indicar o blog Música Nas Alturas.
Depois, confesso, fiquei assustado com a visita inesperada de Dr.Frutuoso. Dexei-o após apresentações com Monsieur Achiamé pois não sabia se haviam chamado um médico para o Clube. O Predador me acompanhou rapidinho e provavelmente os exames foram realizados para avaliação de Monsieur Achiamé.
Quanto ao Porto, não o do cálice, antes dele veio Lúcio Rangel, cuja história do jazz acredito ter sido a primeira que li.Curioso que Rangel resistiu ao movimento da Bossa Nova.
Bom relê-lo em suas resenhas.
Prezados amigos, obrigado pelos gentis comentários. Mr. Tandeta fez com que lembrasse dos velhos tempos, quando tia Palmira, irmã de vovó Tícia, dava em cima de vovô Acácio...
Bem, quanto ao 'livro' sobre jazz de Lúcio Rangel, desconhecemos tal obra. Aliás, Sérgio Augusto, responsável pela organização, apresentação e notas do livro Samba, Jazz & Outras Notas, de Lúcio Rangel, também o desconhece e diz na introdução: "Que só tenha publicado um livro - Sambistas e chorões: aspectos e figuras da música popular brasileira (Francisco Alves, 1962) - sempre me pareceu um descalabro, tanto mais grave porque nunca o reeditaram".
Sim, claro que Lúcio escreveu em inúmeros jornais e revistas importantes nas décadas de 1940, 1950, 1960 e 1970, sendo o pioneiro na redação de uma coluna sobre música popular brasileira (1945, em O Jornal).
Aliás, já escrevemos sobre ele aqui no Jazzseen ( http://jazzseen.blogspot.com/2007/09/samba-jazz-outras-bossas.html ).
Grande abraço, JL.
Muito bem...e qual(ais) os mais importante(s) livros sobre jazz de autores brasileiros?
Bjs
Prezado(a) Coloda,
A modéstia me impede de dizer que é Confesso que ouvi, à venda na Livraria Logus e no Wunderbar Kaffee, aí em Vitória!
Abração!
Querida Coloda, verifique aqui algumas notas sobre guias de jazz:
http://jazzseen.blogspot.com/search/label/Guias
Grande abraço, JL.
Mestre Lester,
Você oxigenou minha memória, mas ela continua nebulosa. Fica uma vaga lembrança, porém correta, a de que meu primeiro texto sobre jazz foi de Lúcio Rangel, isso é inesquecível. Não em livro, como você bem esclarece, e sim em artigo. Mas ambos, Sérgio Porto e ele, tinham fama de “conservadores”, assim como Tinhorão. Ao contrário de Sylvio Tullio Cardoso, um progressista e defensor do jazz, então contemporâneo(década de 60).
Valeu a correção e o esclarecimento.
Legal, mestre Lester; e a turma toda de volta ao Jazzseen...
Abração!
Mr.Lester, sua imaginação é fantástica. Bela resenha.Parabéns!!
Uma aula.
Valeu.
FG
Lucio Rangel (1914-1979) realmente escreveu, e muito, sobre o JAZZ, mas não teve livro específico publicado. Sua obra foi o acima citado "Sambistas e Chorões" de 1962.
Coluna musical no "O Jornal", "Jornal de Letras", "O Comício", "Diário Carioca", "Jornal do Comércio" e "Manchete" foram suas trincheiras, até lançar com Pérsio Moraes a "Revista da Música Popular" em 1954.
A totalidade das edições dessa "Revista da Música Popular" (setembro de 1954 até setembro de 1956) foram reunidas em fac-símile pela FUNARTE em 2006. Alí encontramos diversos artigos sobre JAZZ, incluindo os de José Sanz, mais um "tradicionalista" e tão ferrenho quanto Sérgio Porto.
O livro de Sérgio Porto ("remember" sua frase mais célebre e premonitória do "mensalão" = ou todos nos locupletamos ou restaure-se a moralidade), "Pequena História do Jazz", foi lançado para o público em março de 1953 e dentro da série "Os Cadernos de Cultura" do Serviço de Documentação do Ministério da Educação e Saúde; como pensar hoje em dia em um Ministério "adotando" um livro sobre JAZZ ? ? ? ! ! !
O livro de Guinle, "Jazz Panorama" (prefácio de Vinicius de Morais), veio a público poucos meses após, junho/1953 e, efetivamente, com maior abordagem de estilos e aceitação das então novas correntes.
Em 1959 foi lançada a 2ª edição do "Jazz Panorama" (prefácio de Marcello F. de Miranda), tendo então Jorge Guinle ampliado o texto, com a inclusão de maior discografia e uma síntese dos músicos preferidos pelos críticos brasileiros: Sérgio Porto, Lúcio Rangel, José Sanz, Marcello Miranda, Sylvio Tullio Cardoso e Vinicius de Morais.
Nessa síntese Jorge Guinle cita Sérgio Porto como o "autor do primeiro livro sobre JAZZ publicado no Brasil: Pequena História do Jazz".
Então, foi Sergio Porto, mesmo, o 1º!
Quem sabe, ensina...
Prezado Carioca da Vila;
Sempre trocando para aprender, jamais ensinando, já que quem julga saber tudo, ainda mais no que ao JAZZ se refere é, no mínimo, tolo.
Prezado Mestre Apóstolo, obrigado por, finalmente, esclarecer um dos mais profundos mistérios que assombravam o Jazzseen: qual o primeiro livro brasileiro sobre jazz.
Gostaríamos de obter, caso seja possível, a fonte de tal informação (março/junho) para que a façamos constar dos autos.
Infelizmente, não possuímos a segunda edição de Jazz Panorama, mas a fonte será aceita com base exclusivamente na credibilidade de Mestre Apóstolo que, aliás, poderia ser avô, pai ou filho de nosso saudoso e desaparecido Mestre Edù, o homem que sabia de tudo. Ou quase tudo.
Grande abraço, JL.
As datas de lançamento dos livros foram anotadas por mim nos proprios livros, sendo que o de Sérgio Porto me foi presenteado por Mestre LULA em 24/05/1987, no qual anotei a data de 03/1953 extraida de notícia (sem trocadilho) do Diário de Notícias.
A data da 1ª edição do livro de Guinle foi anotada por mim em folha da 2ª edição e extraida de recorte do jornal A Noite (vicio de leitura de meu falecido avô materno).
A data da 2ª edição do livro do Guinle consta do próprio livro, também da Livraria Agir Editora, que adquirí em sebo na Rua dos Andradas / Rio de Janeiro.
De momento é o que posso informar, já que desde 2001 eliminei uma montanha de jornais e revistas focadas no JAZZ (absoluta falta de espaço), reduzindo-a a 21 coletâneas encadernadas com o que considerei essencial para consultas, ao lado dos livros(236) e de algumas poucas publicações mais.
Em tempo, se é que o há:
Na 2ª edição do seu "Jazz Panorama", Jorge Guinle acrescentou capítulo sob o título "Entrevistas Com Músicos e Críticos Sobre as 10 Maiores Figuras do Jazz em Todos os Tempos".
Na parte reservada aos "Críticos Brasileiros", Guinle inicia com Sérgio Porto, escrevendo textualmente:
- Sérgio Porto (autor do primeiro livro sobre Jazz publicado no Brasil: "Pequena história do Jazz")...........
Esses, amigos visitantes, é Mestre Apóstolo, aquele que mata a cobra só de mostrar o pau.
Obrigado e um grande abraço, JL.
Mr. John Lester,
Não se esqueça de dizer que quem também exterminou o ofídio e exibiu o seu cadáver "devidamente morto" (não gosto lá muito da expressão "matar a cobra e mostrar o pau") foi o meu querido tio Frutuoso, que, ao lado das deliciosas rapaduras, exibiu no Clube das terças (ainda vou fazer parte dele, com carteirinha e tudo) o indigitado livro.
Quanto ao mestre Apóstolo, as palavras não são suficientes para descrevê-lo - há que se conhecê-lo pessoalmente (e eu tive essa honra).
Abração!
Acompanho-vos há um tempão e,para complicar toda esta discussão,não sei se alguém aí se lembra,mas aí ou no site do José Domingos Rafaelli,houve um jornalista a afirmar que "Jazz Panorama" não é da autoria de Jorge Guinle,mas de um ghost-writer contratado pelo endinheirado playboy,a simplesmente deixar-lhe os créditos do livro que ele nunca teria escrito.Pesado,não?Pura malediscência?Verdade oculta por anos a fio?Alguém aí tem algo a dizer,no tocante a chegarmos à verdade dos fatos,com todo respeito ao amor de Guinle pelo jazz?
Prezado Anônimo:
É fácil levantar "lebres", ainda mais por um "jornalista" não identificado.
Não tenho procuração do falecido Guinle para qualquer tipo de defesa, mas sempre é bom lembrar que enquanto a maior parte dos "jornalistas" levanta "lebres", GUINLE "VIVEU' o JAZZ na meca e nas épocas aureas (Rua 52 e por ai vamos).
Ouvinte, apreciador e colecionador dos mais dedicados e compulsivos, tinha seu apartamento no Copacabana Palace quase que inteiramente ocupado com seus discos, livros e memórias do JAZZ.
A foto dele com a então esposa e PARKER, é documento que faz parte da história.
GUINLE era criatura afável, interessado no que lhe agradava e com excelente redação.
Enfim, "lebres são lebres" feitas para correr e sigo creditando a obra ao Autor.
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