06/12/2007

João Sebastião

Outro dia eu tomava café e comia pão de queijo na agradável casa do amigo Chico Brahma. Com algumas foices e facões, conseguimos abrir uma pequena clareira na floresta que encobria sua varanda, onde pudemos sentar e conversar longamente. Após constatar quão inconveniente é a vida em contato com a natureza, como não poderia deixar de ser, o assunto logo resvalou dos livros e adubos orgânicos para a música. Chico sempre foi um apaixonado pela escola denominada third stream, cujo objeto seria, numa definição elementar, fundir a música clássica com o jazz. Até onde pude ouvir, a coisa não deu muito certo, talvez principalmente em razão de que, no jazz, o que conta é o intérprete e, na música clássica, o que conta é a partitura. Bem, isso ao menos era assim até bem pouco tempo, antes de surgirem coisas como o Chopin de Marta Argerich ou o Beethoven de Friedrich Gulda, ou seja, até que o intérprete clássico pudesse colocar aqui e ali alguma impressão pessoal sobre a obra imaculável dos gênios consagrados, prática historicamente bem próxima da heresia na opinião de alguns catedráticos menos liberais. O jazz, por sua vez, também passou a servir-se de carrancudos improvisos escritos, coisa que, num primeiro momento, soava como estranha contradição ou falácia. Sim, hoje não podemos mais negar, o jazz virou coisa acadêmica e, atualmente, é lecionado nas universidades da mesma forma séria como, antigamente, se ensinava música clássica. Chico, que nunca conseguiu ficar sentado por mais de 47 segundos consecutivos, levanta-se e parte para seu inacreditável e imenso baú de jequitibá, herdado de um bisavô polonês, herói da Revolução Farroupilha que se refugiou na plácida São José do Calçado, terra de Pedro Nunes. Vasculha daqui, vasculha dali, Chico saca do misterioso mobiliário um daqueles long plays que mais ninguém tem, ou mesmo nunca teve, no Espírito Santo: Ron Carter meets Bach, gravado em 1991 para a Blue Note.
Embora em alguns trechos eu sentisse o violoncelo desafinando, preferi acreditar que fosse improviso. Não, não posso dizer que foi uma experiência penosa, embora eu prefira ouvir as sonatas para violoncelo de Bach interpretadas por outros instrumentistas. Poderia citar pelo menos quatro gravações, na ordem de preferência: 1) Mstislav Rostropovich – EMI 55604/5, de 1991; 2) Paul Tortelier – EMI 62878/9, de 1982; 3) Antonio Meneses (vejam só, um pernambucano) – Avie 52, de 2004 e 4) Jaap ter Linden – Harmonia Mundi HMX 2907346/7, de 1997. Sem dúvida existem outras, algumas históricas, como as de Casals, mas não viemos aqui para isso. Já faz um bom tempo que Ron Carter, nascido em 1937, admira a música de João Sebastião e, certamente, é um dos maiores contrabaixistas do jazz. Além disso, sempre brincou com o violoncelo, tornando-se íntimo do instrumento e um sincero interessado pela música de Bach. Carter chegou a estudar as seis suítes para violoncelo, mas não se aventurou a brincar com essas que são um dos maiores desafios dos violoncelistas, desafio enfrentado com sucesso por raros músicos. Carter limita-se, aqui, a passear por adaptações de pequenos e famosos trechos da obra de Bach, muitos deles bastante populares. Antes que pudesse tomar a nova xícara de saboroso café forte e quente, Chico retira o álbum de Carter no meio da faixa Arioso e coloca o de Jacques Loussier: Vivaldi, The Four Seasons, lançado em 1994 pela Telarc. Em seguida, no melhor trecho da Primavera, Chico dispara em direção à cozinha, para retirar do forno mais uma gigantesca fornada de pães de queijo. Com a boca cheia da guloseima mineira, não ficaria bem falarmos agora sobre Loussier. Ficam, então, as faixas Arioso, com Carter, e um allegro com Loussier. E, puristas clássicos, sejam tolerantes com as interpretações que seguem. Imaginem, verbi gratia, Bach tocando bebop e, assim, poderemos apreciar a proposta da third stream com o respeito que ela merece. Interessados em conhecer bons músicos eruditos brasileiros, em gravações de boa qualidade, recomendo o site Clássicos, onde encontramos livros, cd’s e dvd’s, além das gravações do pernambucano Antonio Meneses. É isso.

24 comentários:

Anônimo disse...

O texto, muito bom!
As faixas, Arioso: muito pesada , não me agradou. Spring: Excelente!
Adorei!

Anônimo disse...

Por que tudo em inglês?

Anônimo disse...

a resenha e legal mas o carter devia ficar so no jazz mesmo

Anônimo disse...

Suggestion: listen to Modern Jazz Quartet and let's eat "pão de queijo".

Anônimo disse...

Let’s talk seriously, please.

It was also in the 1950s that a greater rapprochement between jazz and classical music began to emerge. Like Lewis, many other jazz musicians were studying much of the great classical literature, from Bach to Béla Bartok, to expand their musical horizons. Classical musicians, too, were listening more seriously to jazz and taking a professional interest in it. The ideological and technical barriers between jazz and classical music were beginning to break down. In that climate an apparently new concept or style, termed “third stream” by Gunther Schuller, arose. But third stream music was only apparently new, since European and American composers—including Claude Debussy, Igor Stravinsky, Charles Ives (using ragtime), Darius Milhaud, Maurice Ravel, Aaron Copland, John Alden Carpenter, Kurt Weill, and many others—had employed elements of jazz since early in the century. The difference in the 1950s and '60s was that the third stream amalgams began to include improvisation and the traffic was now no longer on a one-way street from classical music toward jazz but was flowing in both directions. Spearheaded by Lewis and Schuller, the movement produced a wide variety of works and varying approaches to the process of cross-fertilization. Third stream began, particularly in the cultivated hands of pianist Ran Blake, to mate classical concepts and techniques with all manner of ethnic and vernacular musics and traditions as well as with jazz. Though the term is now seldom used, the concept of third stream remains alive and well; Charlie Haden and Carla Bley's Liberation Music Orchestra works and Randy Weston and Melba Liston's African-influenced compositions are cases in point. Third stream music is also called by other names: crossover, fusion, or world music. So lively and penetrating has the stylistic intercourse been that it is nowadays often impossible to identify a piece as jazz, classical, or ethnic, proof that the third stream ideal of a true and complete fusion (not always technically possible in the 1960s) has at least partially been achieved. Among the myriad contributions to third stream music over the years, Robert Graettinger's works for various Kenton orchestras are crucial. Major atonal, polyphonically complex Graettinger compositions such as "City of Glass" (first performed in 1948) and his remarkable arrangements of standard popular songs reveal a talent of astonishing originality—showing little influence of Stravinsky, Arnold Schoenberg, Bartók, or any major jazz figures—especially unusual for a man so young (he died at the age of 34).

It's done.
No more to talk.

Anônimo disse...

no more to talk? miseravão...

Anônimo disse...

Conheço esse álbum do Carter, ele é realmente fraquinho, por isso prefiro ele tocando jazz. E o site Clássicos é muito bom Lester, valeu a dica.

John Lester disse...

Prezado amigo Badassssssssss, seria interessante citar a fonte do seu comentário, que nada mais é que cópia parcial de um artigo de Gunther Schuller para a Encyclopedia Britannica, disponível online em http://www.britannica.com/eb/article-215430/jazz

Repito que nada substitui os livros, esses nossos queridos amigos abandonados pela cultura atropelada da internet, onde as pessoas recortam fragmentos esparsos para formar conceitos, muitas vezes, bastante debilitados.

Gunther é uma figura central nesse contexto: instrumentista mediano, bom músico, grande figura no que tange aos estudos histórico-bibliográficos sobre o jazz. Entre suas obras, indico 1) Early jazz: it's roots and musical development e 2) The swing Era: the development of jazz: 1930-1945.

Nessa segunda obra, na página 327, Gunther pede desculpas pelas bobagens que escreveu sobre Cab Calloway na primeira obra. Como todo sábio, Gunther reconhece quando erra, o que nos traz alento, conforto e segurança quando o lemos.

Por isso, prezado Badasssss, nunca diga tolices como 'no more to talk'. Tudo está por ser dito.

OBS: compre o livro, que na net você não encontra.

Anônimo disse...

ahhhhhhhh!!!
You cautgh up too, Lester!!!
I was fully and trully hit!
Do you wanna marry me?

Anônimo disse...

JL ,se sou Mr.Speakeasy tú é Sir Sherlock Holmes.O Gunter Schuller esteve num dos Festivais de Inverno de Música de Campos do Jordão.Infelizmente, pq frequento com regularidade essa estação climática, não estava nas imediações na ocasião.O Ron Carter, tive o privilégio é a honra ,em 92, de estar a seu lado quase uma tarde inteira.Ele se apresentou com o pianista brasileiro radicado em Los Angeles ,Guilherme Vergueiro, no Centro Cultural São Paulo.Naquele dia,bem na data de meu aniversário, consegui assistir ao ensaio, uma “workshop” e a apresentação propriamente dita ,conversamos no camarim antes e depois da performance.Um dos resultados práticos dessa experiência, são uns 8 cds dele q levei autografados "happy birthday Ed, Ron Carter".E o melhor trabalho da discografia do Carter ,na minha opinião, é o disco “Etudes”(já saiu em cd há mais de 10 anos) de 83.Bill Evans(o saxofonista homônimo),Art Farmer(flugelhorn) e o sensacional Tony Williams(bateria) formaram o quarteto da gravação.Edú

John Lester disse...

Eduardo G. Spikeasy, não Speakeasy. É como em Tina Brooks, que se lê Tina mesmo, e não Taina.

Estamos por aqui Edú, ouvindo Reefer Madness, a Collection of Vintage Drug Songs. Em breve, resenha sobre Cab Calloway, o tal que Gunther mesmerizou e, depois, se arrependeu.

Anônimo disse...

Lester , da mesma forma q nem minha alma gêmea sabia quem era o sujeito, quando lhe mostrei o feito,que dirá eu.E por uma coincidência do destino estava em NYC quando Calloway morreu.Deu manchete e foto na primeira e página inteira de obituário no NYT.Ulá,hi-lee,hi-lee,hooo.Edú

Vagner Pitta disse...

...

grande texto...eu sempre leio ótimos textos por aqui, oquê eu acho que coloca, realmente, este blog entre os maiores sítios de jazz da internet

agora, quanto a essas abordagens eruditas por esses jazzistas, vou, infelizmente, me juntar ao rol de pessoas que disseram que Ron Carter deveria só tocar jazz sem pensar em erudito...não querendo desmerecer a resenha escrita e reiteiro que ela traz informações e dicas interessantes, mas minha opinião é que: não dá pra imaginar Ron Carter como um intérprete de música erudita quando já se ouve Pablo Calsals ou Antônio Meneses...mas é interessante ouvir essas abordagens mesmo assim rsrs

Acho que de jazzístas só Wynton Marsalis (de quem Ghunter Schuller é fã confesso)conseguiu alcançar o olimpo em ambos idiomas: jazz e erudito. Aliás, Wynton, que é o maior compositor das ultimas décadas, em algumas de suas composições sempre uniu o jazz e o erudito com uma fluência impressionante.

Há outros como John Lewis do Modern Jazz Quartet, o próprio Ghunter Sculler, o Keith Jarrett...enfim, esses são alguns dos músicos que transitaram e transitam por esses dois idiomas com um sucesso considerável, apesar de não alcançarem a perfeição dos grandes intérpretes de erudito...


obrigado pelos bons textos e boas informações Sr Lester ! ( visitem meu blog www.farofamoderna.blogspot.com )


...

John Lester disse...

Prezados amigos Maria Augusta, Dijalma, Thiago, Augusto Carlos, Edú e Vagner, obrigado pela participação sempre inteligente e sincera. São pessoas como vocês, ainda quando discordam ou criticam, que me fazem continuar essa luta insana em favor do jazz.

Grande abraço, JL.

Anônimo disse...

Lester,estou apenas checando algumas informações.Semana q vem te envio a colaboração de dezembro.E se me permite, num caráter mais pessoal, privilegie as atitudes q essencialmente lhe tragam prazer na vida.Se o jazz se enquadra nessa situação, vamos em frente, conte com meu apoio.Edú

Anônimo disse...

Lembro-me de uma composição de Ed Kaiser(está no real book 2 - versão antiga): Beethoven's blues 3rd. De fato, é uma "colagem" de passagens do genial compositor europeu. Quando eu toco esse tema, privilegio o mainstream do blues. Infelizmente, eu não possuo nenhum disco com esse tema para sentir como o intérprete trabalha as nuances beethovenianas.

John Lester disse...

Mr. Salsa tirou essa da manga. Não tenho nenhuma versão desse tema, mas idéias de Beethoven numa levada blues deve ser coisa fina. Lembrei do arranjo do Altamiro Carrilho para Humoresque, de Dvorak, em chorinho. É como eu sempre disse: samba também é jazz. Vou procurar!

Anônimo disse...

Earl "Fatha" Hines também tocou Humoresque com pitadas jazzísticas.
Olmiro Müller

cd disse...

Eu tenho um do MJQ.

Cinéfilo disse...

E por falar em chorinho, JL, tenho, ainda sob a égide do vinil, os dois discos "Clássicos em Choro", do Carrilho.
Muito bons, mas não levo a sério, embora reconheça o virtuosismo do flautista maior.
Nem sei se foram lançados em cedê.

Também não levo muito a sério essa coisa do "third stream". Ainda prefiro cada macaco em seu devido galho, a balançar e a fazer graça. Certa vez, conversando com nosso amigo Garibaldi (o qual anda meio sumido...por quê?), houve certo constrangimento de alguns ouvintes presentes, quando ele disse que Ron Carter tinha dedos de veludo - e que era tudo o que Mingus não queria ser.
Discordo de nosso amigo, e sugiro um disco no qual Carter, como sideman, supera-se: The Milestones Jazz Stars, em companhia de Al Foster, McCoy Tyner e o (quase) sempre magnífico Sonny Rollins.

Aliás, acaba de me vir à memória: esse disco chegou a mim via o próprio Garibaldi, que o trocou, junto com "Monk's Dream", pela obra poética de Borges.

Mas, independentemente de qualquer discordancia, a resenha, como sempre, é ótima.
Abraço.

Sergio disse...

Muito bom esse disco!

John Lester disse...

Olmiro, libera essas coisas pra nós!!!

Mr. Grijó, os álbuns de third stream de Carrilho estão em cd sim. Tenho o Clássicos em Choro Vol. 2.

Grande abraço, JL.

Anônimo disse...

Caro Lester

A execução de Humoresque por Earl Hines faz parte do obscuro album "Honor Thy Fatha", editado pelo selo Drive Archive, em 1978.
Músicos que tocam com Hines: Red Callender ao contrabaixo e Bill Douglas à bateria. Na faixa 1 - Birland (autoria do austríaco Joseph Zawinul, recentemente falecido) - Callender toca tuba, por sugestão do produtor Ralph Jungheim, estabelecendo uma sonoridade singular.
Adquiri este CD em 2001, em Manaus, quando andei trabalhando na "selva". Em P. Alegre, já vi o disco em supermercados e nas Lojas Americanas. Acho que vale a pena pesquisar nesses ambientes, aí em Vitória. Abraços.
Olmiro Müller

John Lester disse...

Prezado Olmiro, obrigado pela dica. Seguiremos sua sugestão.