Esta entrevista com Reinaldo Santos Neves se estenderá pelas próximas quarta (10), quinta (11) e sexta-feira (12). O escritor lança A ceia dominicana no próximo dia 18, a partir das 19h, na Biblioteca Pública Estadual, na Praia do Suá.
A ceia dominicana: romance neolatino é a conclusão da trilogia iniciada com dois textos publicados há mais de duas décadas: o Poema graciano (1982) e o romance As mãos no fogo (1983). Por que retomar esse universo, vinte e cinco anos depois?
Projetos literários estão sujeitos a todo tipo de vicissitude, inclusive deserção por parte do autor. No meu caso, se abandonei alguns pra nunca mais, abandonei outros pra retomá-los em outro formato. Dentre estes, posso citar o romance Filhos de Anna: originalmente ambientado em Vitória no século XX, foi a meio caminho transferido pra França do século XIV e convertido na Crônica de Malemort (1978); posso citar também o próprio Mãos no fogo, totalmente reescrito numa linguagem mais elaborada pra substituir a linguagem despojada e enxuta que era a marca da primeira versão. Essas mudanças de formato se fizeram sem longas interrupções: identificada a mudança necessária, tinha início a reformulação do texto. No caso da Ceia dominicana, porém, o intervalo foi bem mais longo entre as duas ou três primeiras tentativas e esta última, que redundou na conclusão do romance. Por outro lado, durante esses 25 anos, em momento algum deixei de acreditar na validade do projeto, de ter fé em sua originalidade e em seu potencial literário. É difícil largar de mão um projeto assim. Além disso, havia a questão de honra de fechar a trilogia anunciada na edição das Mãos no fogo. Assim, minha fidelidade de visionário acabou recompensada: pude encontrar a abordagem que, se não a única possível, me parece ter sido a melhor e mais adequada pra este autor aplicar a este projeto e concluí-lo.
Este livro já está anunciado no texto que Herbert Daniel fez para a orelha de As mãos no fogo. Daniel também já falava, a respeito do que seria essa terceira parte da trilogia, de uma inspiração declarada no Satyricon. Por que optar por esse diálogo com um texto da antiguidade clássica ao escrever uma estória ambientada no balneário de Manguinhos, em pleno final dos anos 70?
Não me lembro hoje, depois de tanto tempo, exatamente o que me deu a idéia de um romance inspirado no Satyricon. No romance Sueli e em correspondência com amigos há referências ao capítulo de cerca de 30 páginas suprimido das Mãos no fogo pra constituir um romance à parte. Em carta de dezembro de 1981 ao escritor João Felício dos Santos sintetizo o projeto como “uma tentativa de recriação moderna da ceia de Trimálquio, do Satyricon” e menciono um dos pratos da ceia, “gato com cerejas, que dizem ser fina iguaria.” Na correspondência posterior o que há são referências eventuais ao conflito entre autor e texto que me levou a uma primeira trégua, na qual me dediquei, por puro diletantismo, à tradução do romance Vendaval na Jamaica, de Richard Hughes, que foi concluída mas não editada. Quanto ao diálogo entre uma história ambientada em Manguinhos e a antiguidade clássica, esclareço que a idéia pro que seria digamos assim um Satyricon brasileiro precede a escolha de Manguinhos como cenário da história: Manguinhos não é cenário do capítulo suprimido, mas do romance que lhe tomou o lugar. E, se o cenário tinha de ser uma praia, porque é numa cidade (não identificada) da baía de Nápoles que se passa boa parte da ação do Satyricon que chegou até nós, era natural que minha escolha recaísse sobre Manguinhos. Manguinhos está no imaginário de toda a minha família. Meu avô materno, Ceciliano Abel de Almeida, já nos anos 20 tinha ali uma casinha de veraneio, e foi lá que se refugiou, como pessoa ligada ao partido da situação, assim que se consumou a vitória dos revolucionários de 1930. Eu mesmo sempre passei as férias lá, desde criança até a idade madura. Aquela velha Manguinhos está guardada dentro de mim com muito carinho. Quanto ao ano do romance, 1979, não podia ser outro: afinal, trata-se de uma seqüência imediata da história das Mãos no fogo, que se situa em fins dos anos 70. O próprio Poema graciano se data a si próprio no verso 351: “ano setenta e nove: eu vinte e sete”.
Em As mãos no fogo, a Vitória do final dos anos 70 está toda lá, retratada de forma um tanto quanto realista. Já a praia de Manguinhos é narrada nA ceia dominicana sob um forte viés do fantástico, do extravagante, o que até nos aproximaria, de certa forma, ao universo da Roma antiga, certo?
Na verdade, o elemento fantástico só se manifestou quando já ia avançado o trabalho de escritura desta versão do romance. Até então, não tinha me passado pela cabeça essa possibilidade: o romance seria tão realista como As mãos no fogo, só que bem mais extravagante, pra usar o seu termo. Aliás, se comparamos, nesse aspecto, A ceia com o Satyricon, vemos que A ceia chega a apelar pro fantástico mais que seu modelo, porque em Satyricon não há nada de explicitamente surreal a não ser uma ou outra história vicária, narrada pelos personagens; há magia, por exemplo, mas não há milagres nem portentos. Mas, à medida que fui desenvolvendo o texto, a dimensão fantástica começou a se impor, o que me pareceu natural e até necessário, porque pavimentava o caminho até o universo de Roma antiga. No entanto, os elementos surreais da Ceia podem até, em grande parte, ser explicados de forma realista, sobretudo se admitirmos que o narrador, como poeta que é, tende a lançar mão de licença poética pra contar a sua história. Convém lembrar que, pra todos os efeitos, A ceia não é um romance de autor, mas de personagem. Seu autor é Graciano Daemon e não Reinaldo Santos Neves. E, sendo Graciano um poeta, é natural que apele não só pro poético, mas também pro fantástico, o que, em termos práticos, dá no mesmo. Me agrada estabelecer um paralelo entre o Graciano narrador da Ceia e o Gulley Jimson narrador de The Horse’s Mouth, do romancista inglês Joyce Cary (falecido em 1957). Jimson é um pintor obsessivo, e assim a história é narrada do começo ao fim pela ótica de um pintor, que tudo vê e tudo expressa plasticamente, atento sempre às cores e às formas do mundo que o cerca.
Nota-se um tom picaresco por todo o romance (algo que inclusive faz ecoar a influência do Satyricon, precursor do gênero), reforçado por uma atitude de se entregar à própria sorte, assumida por Graciano durante os episódios narrados. Podemos pensar numa releitura do gênero nA ceia dominicana?
Segundo P. G. Walsh (The Roman Novel, p. 2 e 4), o romance picaresco não é invenção dos espanhóis, mas dos romanos, com as duas obras-primas que são o Satyricon de Petrônio e o Asno de ouro de Apuleio. No caso específico do Satyricon, temos um romance essencialmente picaresco quinze séculos antes de Lazarillo de Tormes, texto que inaugura o ciclo picaresco espanhol. Assim, com o Satyricon como modelo, A ceia não poderia deixar de seguir o padrão picaresco em sua estrutura narrativa. Ora, muitas características do romance picaresco se encontram na Ceia: narrador na primeira pessoa, narrativa episódica, situações grotescas e ridículas, personagens recorrentes, isto é, que reaparecem ao longo do relato, amoralidade e cinismo, sátira social, digressões sobre a condição humana, histórias vicárias, ou seja, contadas pelos próprios personagens, etc. Sem dúvida nenhuma, A ceia dominicana pode e deve ser classificada como romance picaresco, mas dentro da tradição romana, inclusive porque tem narrador ingênuo (como Encólpio no Satyricon e Lúcio no Asno de ouro), cuja ingenuidade torna-o vítima das circunstâncias. Para ler a entrevista na íntegra, clique nos links a seguir:
http://www.seculodiario.com.br/novo/exibir_noticia_atracao.asp?id=728
http://www.seculodiario.com.br/novo/exibir_noticia_atracao.asp?id=741
http://www.seculodiario.com.br/novo/exibir_noticia_atracao.asp?id=750.