Ao sair do apartamento de Miles Davis em Nova Iorque, nos primeiros dias de dezembro de 1990, a cantora e pianista Shirley Horn dava o segundo passo na direção a tornar um sonho artístico - o maior deles - em realidade. Acabara de obter o "sim" de Miles em participar de duas canções no disco que produzia com cordas e sopros. Era um fato até então inédito pra Davis que nas duas últimas décadas de vida se convencera ser, ao lado de Dizzy Gillespie, o músico de jazz mais importante vivo. Em razão disso, sistematicamente recusava qualquer convite para gravação ou espetáculo em que seu nome não constasse nos créditos acima de todos. Além do que: seu aceite o colocaria a soprar o trompete em surdina em duas baladas ditas tradicionais. E, naquele momento da vida, Miles queria mais era hip-hop em seu "jazz". Tragicamente, porém, poucos dias depois, Miles morria deteriorado pela combinação letal de excessos e saúde frágil. No entanto, não havia mais retorno para Shirley. O primeiro passo já havia sido dado ao persuadir o compositor e arranjador Johnny Mandel a fazer um disco sob sua direção musical, arranjos e escolha de algumas de suas canções. Mandel se encaixava no benéfico caso do músico de carreira curta, especificamente, de trombonista e trompetista, em períodos alternados, das bandas de Count Basie e Buddy Rich que passava mais tempo rabiscando suas recriações orquestrais na pauta do que ajustando a boquilha de seus instrumentos. Johnny é taxativo ao recordar aquela época - final dos anos 40 e década de 50 - como " única em que o bom gosto popular se ajustou a produção musical em massa". Tal caminho lhe abriu oportunidade - coroada com prêmios Grammys e Oscar - a uma bem sucedida carreira de arranjador e compositor para filmes de cinema, televisão e de trabalhos orquestrais pra cantores e cantoras do porte de Sinatra, Tony Bennett e Barbra Streisand. Sua criação mais conhecida, em sua faceta compositor, é a canção "The Shadow of Your Smile". Sua jóia mais rara, opinião desse escriba, a canção "A Time For Love" (em parceria com o letrista Paul Francis Webster). Também é autor da canção tema do filme e da série televisiva "Mash", de festiva estrutura melódica. Lágrimas derramadas por Miles à parte, era hora de botar a "mão na massa". A combinação foi definida da seguinte forma para esse particular trabalho: um orquestra de 49 figuras (entre cordas e sopros) colocaria sutis camadas harmônicas para Shirley associar seu canto - uma espécie de declamação lenta que prestava sensação de palavras sussurradas no ouvido. Ela se acompanharia ao piano, como fazia absoluta questão, com os dois membros restantes de seu longevo trio - Charles Ables (b ac), 33 anos de grupo e Steve Williams (bat), 23 anos de convivência mútua. Seria esta a base, Shirley dedilhando de forma econômica, necessária diria, onde a nota era preenchida em espaço conciso à sua articulação silábica. O repertório composto seria de quatro canções de Mandel, dois standards (irmãos Gershwin e da dupla Lorenz e Hart), duas canções da Broadway de Dmitri Timokin e duas canções pouco reconhecidas. Às restantes, uma canção francesa de Piaf vertida para o inglês como também a italiana "Estaté" de Bruno Martino - eternizada por João Gilberto em seu álbum "Amoroso". O primoroso resultado final pode ser aferido nas 14 semanas que o álbum permaneceu em primeiro lugar no setor jazz do mercado américo-canadense. O segundo resultado - que ilustra ainda mais o relevo artístico - foi impresso durante a edição comemorativa dos 60 anos da revista Down Beat. A reportagem principal elaborou lista dos sessenta discos mais significativos, na opinião dos críticos, de todas às épocas da publicação. "Here´s to Life" (elegia à vida, numa tradução livre), nome de uma das canções e título que Shirley "batizou" o álbum, fazia parte dela. O disco foi dedicado a Miles Davis. A ironia é que a parte destinada a ele foi assumida por Wynton Marsalis. Talvez, ouvindo a participação de Wynton, brilhantemente lírica, Miles modificasse, ao final de seus dias, sua opinião a respeito do imberbe trompetista que conheceu naquela época e "amava odiar". Para os leitores fica a faixa A Time For Love .
18 comentários:
Prezado Mestre Edù, obrigado por mais uma excelente resenha.
Após quase três anos homenageando exclusivamente instrumentistas - que muito rara e secundariamente emetiam som vocal - Edù estabelece o precedente vocalistas, demonstrando, sempre e mais uma vez, que a democracia é mais forte que nossos preconceitos.
Grande abraço, JL.
Como sempre, Mr. Lester se antecipa e faz "O COMENTÁRIO".
É isso aí - sinto a falta de mais vocalistas no jazzseen e uma casa democrática e plural como esta não pode relegar os vocalistas a um plano secundário.
Afinal de contas, eles e elas também são pilares fundamentais na construção do edifício jazzístico.
Como ter uma visão mais ampla do jazz sem o swing maroto da doce Ella, sem a pungência trágica da atormentada Billie, sem a tintura bluesy do viril Joe Williams, sem a delicadeza vivaz de uma Blossom Dearie.
Falar em jazz cantado é, também, falar nos grandes letristas da canção americana, que nos legaram tantas e tantas canções maravilhosas.
O jazz certamente seria menos interessante sem a sofisticação debochada de um Cole Porter, sem o sarcasmo de um Lorenz Hart, sem o lirismo de um Ira Gershwin.
Que venham mais Shirleys, Bennetts, Nats, Sinatras, Murphys, Sarahs, Hartmans, Tormés, Eckstines, Anitas, Junes, Bettys, Helens, Ruths, e tantos mais.
Parabéns ao Edu pelo excelente post - como de costume, alinhavando um conhecimento enciclopédico com um impecável bom gosto.
Edu:
Pra mim, ler vocês é sempre um aprendizado.
Quanto ao resto, repito o Cordeiro - que venham todos os que ele citou...
...Mas que seja para ontem...
Abraços do Oleari.
Pena que tenha sido só uma faixa...
Valeu.
Em, tempo:
Ironia à parte, bem lembrada por você, Edu, o Wynton esbagaça...
Que bela passagem...
Oleari
Parabéns, Mr. Edú, pela magnífica resenha; o Lester e o Érico já disseram tudo.
Ah! Será que Mr.Bravante (do post anterior) já leu isto aqui?
Estou curioso pelo comentário dele...rs
Grande,Irmãozinho.
To ligado.
Abraço
Isso é jazz! ;)Harmonia, criatividade, requinte, elegância!
Só não entendi uma coisa no texto muito bem escrito pelo sr.edú: como pode Miles dar o "sim" nos primeiros dias de Dezembro de 1991 se o homem havia morrido em 28.09.1991? Chico Xavier??
Prezado anônimo, conforme versa em contrato firmado, cada colaborador do Jazzseen responde por suas afirmações e opiniões aqui publicadas. Aguardemos Mestre Edù e sua sempre alviçareira admoestação.
Grande abraço, JL.
Agradeço ao anônimo, pedindo q se identifique na próxima vez para q tenha possibilidade de lhe agradecer nominalmente a retificação da informação. Sim, Miles Davis morreu em 28 de setembro de 1991 aos 65 anos no St. John's Hospital and Health Center em Santa Monica, Califórnia.Portanto, peço vênia aos visitantes q leiam no corpo do texto inicial “dezembro de 1990”, em vez 1991, como se registra equivocadamente. Em dezembro de 1991 , precisamente como recorda o visitante anônimo , Miles era morto e também período da realização do cd de Shirley da qual havia concordado em participar.Quanto ao jazz ,vocalizado ou não, ele representa tamanha riqueza e infinidade de personalidades ,fatos ,correntes e estilos q quanto mais pesquisamos prolifera maior número de acontecimentos a relatar .Para meu privilegio, o democrático editor do Jazzseen abre generosamente espaço para q diversas dessas histórias sejam registradas em suas nobres páginas .Quanto a Shirley, só teria a mencionar q não podemos relega-la apenas como cantora de jazz.Shirley – que faleceu em 21 de outubro de 2005 - se acompanhava magnificamente ao piano,alcançando uma excelência nessa junção , cantora e pianista q própria se acompanha – q uma Diana Krall – na minha modesta opinião – dificilmente chegará alcançar.Mano velho agora a prioridade é aquela.
Linda resenha Sr. Edu, eu também adoro jazz vocal. Beijos!
Marilia, pq vc não disponibiliza o nosso acesso ao seu perfil?
Lester,
caso seja ainda possível corrija , por gentileza, no lugar de “1991” no primeiro parágrafo do texto o ano para 1990.Abraço.
Timidez...
grande Edu
este é um dos discos de cabeceira, tão belo quanto melancólico, daqueles pra ouvir no escuro
Abs,
grande Gustavo,
luminar "boa praça" de um dos blogs q nos inspira - CJUB.
JL,valeu.Grande abraço a ambos.
Ao que tudo indica, o nosso The Boss, John Lester, é voto vencido quanto ao ódio pelo jazz vocal. Já já preparo uma resenha sobre minha vocalista predileta do jazz atual. Valeu Edù, só você para adumbrar o caminho a ser seguido doravante pelo Jazzseen.
"Adumbrar"? Legal...
Postar um comentário