20/11/2009

Mulata

Sim, vovô Acácio sempre foi um exagerado em tudo: bebida, literatura, comida, jazz e mulheres. Sua imensa biblioteca ainda guarda as lembranças dos bons tempos em que trabalhava como estivador no porto de Santos. Estão ali os livros de Mencken e Sérgio Porto, amigo fiel e confidente, os álbuns de Moacyr Peixoto, primo distante, morador da Miguel Lemos, nº 7, em Copacabana e motivo de eterno orgulho, os copos vazios de café com guimbas de cigarro e centenas, talvez milhares, de fotografias de mulheres nuas, todas ex-namoradas, ex-esposas ou simples ex-amantes. Quem o vê hoje, alquebrado, sustentando com dificuldades a pesada armação de casco de tartaruga, com suas unhas imensas, generosos tufos de cabelo saindo do nariz e das orelhas, dentes e dedos amarelados pela nicotina, as camisas e cuecas ruídas pela cadela Billie, não poderia imaginar o absoluto sucesso que fazia junto às mulheres ou, como ele mesmo as chamava, essas danadinhas. Toda a desgraça que se abateu sobre o pobre vovô Acácio teve início, é claro, com uma mulata e um álbum de Latin Jazz. Uma mulata casada e, obviamente, casada com um português. E isso faz muito tempo: para se ter uma idéia, Lula ainda tinha dedo e Caetano ainda não havia notado seu analfabetismo. Foi vendo a mulata na feira, com sua sacola de nylon listrada, comprando frutas multicoloridas, que vovô sentiu aquele calafrio que somente um bicho-de-pé ou um solo de Charlie Parker são capazes de produzir num mortal. Quando se apresentou, a mulata, calada e séria, quase indignada, deu de costas, descrevendo um giro sestroso ao redor do tamanco amarelo, enquanto largava no ar um aroma quase amargo de tão doce. Petrificado, mas ainda consciente, vovô observou aquela saia branca descrever um círculo perfeiro para, em seguida, aterrissar lentamente e ajustar-se novamente ao corpo matreiro da moça.

Perguntando imediatamente ao vendedor de cuscuz se ele a conhecia, descobre, após comer seis fatias de quebra-queixo superfaturadas, que seu nome é Sol, que ela sorri pouco e que mora logo ali, na Rua 15, ao lado do velho prédio da Alfândega. Descobre também que ela gosta de cha cha cha e samba como ninguém. Seu marido, Manuel da Cuíca, é dono da loja de instrumentos da esquina, a tal de Casa do Caboclo, especializada em instrumentos de percussão. Dirigindo-se imediatamente à Casa do Cabloco, vovô é recebido pelos fartos bigodes de Manuel que, gentil, lhe oferece ajuda e algumas balas Juquinha. Coçando o queixo e fingindo interesse desusado pelas cuícas, vovô circula por todo o diâmetro da estreita loja, na esperança de ver a mulata novamente, nem que fosse por um breve instante. Manuel, percebendo o interesse de vovô, traz a mais nova cuíca da casa, desenvolvida com a última tecnologia disponível. Veja, disse ele a vovô, já vem com um paninho e uma garrafinha d’água, pronta para usar. Vovô, sem alternativa, segurou a cuíca e ficou um bom tempo observando-a. Balançava o instrumento de um lado para o outro, segurava-o no alto, fitando-o contra a luz, como que em busca de algum defeito ou observando algum detalhe somente identificável pelos mais experientes percussionistas. Nesse meio tempo, surge Sol por trás do balcão, com sua blusa lilás, chupando caju. Vovô, extasiado, ameaça friccionar a haste rígida da cuíca e dedicar-lhe um merengue em ré menor, quando se dá conta de que sempre odiou percussão, que nunca suportou nem mesmo os bateristas do West Coast, com suas delicadas escovinhas deslizantes, que dirá cuícas e atabaques. Ela, então, observando-o de cima a baixo, pediu com voz molhada: toca um pouquinho pra mim? Antes que vovô tivesse tempo de inventar alguma desculpa para Sol, Manuel retira da orelha o lápis suado e começa a fazer contas em voz alta, enquanto belisca alguns tremoços. Nisso, Sol passa do balcão à loja, já ensaiando alguns passos de salsa em direção a vovô Acácio. Toca, vai, ela insistiu enquanto encarava os olhos sedentos de vovô. Já bastante suado e quase sem ar, vovô observa em tom funesto que, infelizmente, o instrumento está desafinado, o que demandaria um diapasão e um pouco de couro de novilho precoce. O senhor tem um diapasão, perguntou vovô a Manuel. Não tenho não senhor, tenho apenas parmesão, serve?

Enquanto Sol e vovô sorriam um para o outro, Manuel embrulhava a cuíca em papel de pão, fazendo com que vovô prometesse voltar à loja com o instrumento devidamente afinado, para que Sol pudesse apreciar seu desempenho. Cuíca paga e promessa feita, vovô corre para a primeira loja especializada em cha cha cha e compra o álbum Mr. Bongo plays cha cha cha, de Jack Constanzo and his Latin Orchestra, com quem aprende não apenas a tocar cuíca, como também agogô, tamborim, pandeiro, bumbo, balde, washboard e caixa de fósforo. No exato instante em que coloquei a faixa Rabo e Mula para tocar e perguntei curiosa a vovô como tinha sido sua exibição para Sol, chega vovó Tícia, com café forte e cara de poucos amigos.

14 comentários:

John Lester disse...

Miss Nadler, obrigado por mais um capítulo da saga acaciana.

Dizem por aí que Sol passou a sorrir bastante depois desse dia.

Grande abraço, JL.

figbatera disse...

Que maravilha, me acabei de rir...
Esse Vovô Acácio é dos meus, rs!!!

LeoPontes disse...

Posso imaginar a perplexidade do vovô Acasio com a Sol.
A foto da dita cuja foi muito bem escolhida e dá até pra ver o resto do imenso sorriso!
Ótima resenha. Grande bom humor.
Parabéns.

Abrçs

APÓSTOLO disse...

Prezada PAULA NADLER:

Texto mais que saboroso, mais que bem temperado ! ! !
Parabéns aos avós, principalmente à cara de poucos amigos (mas com café forte) de vovó Tícia.
Mais, sempre mais histórias tão bem humoradas.

thiago disse...

saia nociva

Érico Cordeiro disse...

Prezada Paula,
Pobre Vovô Acácio - escravo dessas terríveis criaturas de olhares sestrosos, sorrisos marotos, curvas malemolentes...
Pelo menos aprendeu a tocar caixinha de fósforo - o que não é pouca coisa!!!
Abraços.

Salsa disse...

Paula tem um baú cheio dessas histórias. Acácio é uma fonte inesgotável - Huh!

Augusto Carlos disse...

Jack Costanzo era um excelente professor. Muito boa sua resenha.

Érico Peixoto disse...

Excelente! Faço minhas as palavras do grande Olney: me acabei de rir.

Abraços!

pituco disse...

paula,

texto bem humorado, sensual e piramidal...

é isso aí,
abraçsons

Cinéfilo disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Grijó disse...

Ótimo, ótimo.
É sempre bom rir quendo há textos inteligentes.

Valeu, Peene.

.Edinho disse...

Prezada Paula,
Nada como um texto inteligente para contar a saga do " Vovô Acácio ", é bom começar a semana rindo com as suas histórias
Valeu !

.Edinho disse...

Prezada Paula ,
Eu não acredito o que dizem na boca pequena...
Que o Sr.JL,nos seus escritos diz que não gosta de um vibrafone bem tocado.
Será verdade!?!
Por favor, diga ao Sr. John Lester, que deixei um post para ele, lá no Blog JazZona.
Obrigado .