15/02/2010

Lenda viva: Mundell Lowe

Enquanto terminava meu arroz-de-cuxá, ouvia Lester lamentar a queda de visitas ao Jazzseen durante o carnaval. Olhando incrédulo pela janela, dizia: “É sempre assim, Mr. Serralho, não sei por que essa gente invariavelmente troca o jazz pela dança do lelê, pelo cacuriá, pela dança do caroço ou pelo temível bambaê de caixa”. Pensando comigo mesmo, eu, Tobias Serralho, não poderia censurá-los, uma vez que era eu o responsável pelo roncador, o maior dos três tambores que integram o tambor-de-crioula, dança típica do meu querido Maranhão. Os outros tambores são o socador (tambor médio, responsável pelo ritmo) e o crivador (tambor pequeno, responsável pelo repicado). Lester nunca poderia supor que eu, um admirador de Mundell Lowe, era também apaixonado pela punga, aquela umbigada que as dançarinas dão umas nas outras. Sim, a tradição do tambor-de-crioula vem dos descendentes africanos. É uma dança sensual, excitante, que apresenta variantes quanto ao ritmo e a forma de dançar, e que não tem um calendário fixo, embora seja praticada especialmente em louvor a São Benedito. É dançada exclusivamente por mulheres que fazem uma roda, em cujo centro evolui apenas uma delas. O momento alto da evolução é a tal "punga" ou umbigada. A punga é uma forma de convite para que outra dançarina assuma a evolução no centro da roda. Tentando reanimar Lester, lembrei-lhe que Mundell Lowe, o grande guitarrista, ainda está vivo e forte. Sim, respondeu Lester balançando a cabeça animadamente: “Uma lenda viva!” E prosseguiu: Lowe nasceu no dia 21 de abril de 1922, em Laurel, Mississipi. Começou a aprender a guitarra aos seis e, aos treze, foge de casa, encaminhando-se para os bares de New Orleans, onde ouve e aprende o estilo dos mestres.

Claro que seu pai, um violinista amador e pastor Batista, o encontra num daqueles terríveis clubes de jazz, levando-o imediatamente para casa. Não demorou muito para que fugisse novamente, tentando a carreira com a banda de Pee Wee King, mas é novamente resgatado ao lar pela diligência paterna. Em 1940, terminada a escola, Lowe ingressa imediatamente na banda de Jan Savitt, até que é convocado a prestar o serviço militar. Designado para uma base próxima a New Orleans, tem a sorte de conhecer o oficial responsável pelos entretenimentos da base, ninguém menos que John Hammond Jr., aquele que viria a ser um dos maiores produtores do jazz e que, terminada a guerra, muito o auxiliaria na carreira. Foi por intermédio de Hammond que Lowe conheceu Ray McKinley. Em seguida, trabalha com Benny Goodman, Wardell Gray, Fats Navarro e Red Norvo, entre outros grandes líderes. No início da década de 1950, Lowe passa a trabalhar em New York, atuando em clubes e em sessões de gravação ao lado de gente como Buck Clayton, Lester Young, Charlie Parker e Billie Holiday. Na mesma década, trabalha na orquestra da NBC e dirige para a televisão o show Today, atuando ainda na Brodway e participando de shows e gravações ao lado de músicos como Ben Webster, Ruby Braff e Georgie Auld.

Em 1965, Lowe estabelece-se em Los Angeles, onde atua no rádio e na televisão, tanto como intérprete quanto como compositor, além de dedicar o escasso tempo livre ao ensino. Sempre atuante, na década de 1980 forma seu próprio grupo, TransiWest, contando com músicos como Sam Most, Monty Budwig e Nick Ceroli, com o qual se apresenta no Monterey Jazz Festival de 1983. Embora reservadamente Lowe faça suas experimentações de vanguarda, é como um dos melhores guitarristas do cool jazz que seu nome ficará gravado no jazz, com seu discurso ágil, sedutor, repleto de swing e com seus inteligentes e divertidos solos, recheados de citações de Standards do jazz. Para os amigos, fica minha receita do arroz-de-cuxá e a faixa You Turned the Tables on Me, retirada do álbum A Grand Night for Swing, gravado em 1957 para a Riverside. Com Lowe estão Gene Quill (as), Billy Taylor (p), Les Grinage (b) e o grande Ed Thigpen (d), recentemente falecido. Curiosamente, Lester lembrou que este bom álbum recebe apenas duas de cinco estrelas da Virgin Encyclopedia of Jazz, 2004, editada por Collins Larkins. Já o All Music Guide é um pouco mais generoso, ofertando quatro de cinco estrelas para esse que, segundo Lester, merece três ou mais estrelas. Verificando se a quantidade de azedinha estava correta, Lester aprova tanto meu arroz-de-cuxá quanto os solos de Lowe. . Bom carnaval para todos!
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Ingredientes:

500 gr de camarões secos sem casca
1/2 xícara de farinha de mandioca
1 1/2 xícara de gergelim torrado
1 maço pequeno de vinagreira (azedinha) limpa, lavada e escorrida (não erre a mão, senão amarga)
2 colheres (sopa) de óleo
2 dentes de alho amassados
1 cebola média picada
2 tomates grandes sem pele e sementes, picados
500 gr de camarões frescos pequenos, limpos, lavados e escorridos
6 colheres (sopa) de cheiro verde (salsa, cebolinha e coentro) picados
3 xícaras de arroz limpo, lavado, escorrido e cozido.

Modo de preparo:

No processador ou liquidificador, coloque os camarões secos, farinha de mandioca, gergelim, bata até obter uma mistura homogênea e reserve. Em uma panela, coloque a vinagreira, regue com um pouco de água, tempere com sal a gosto, cozinhe até ficar macia, tire a verdura do fogo, escorra, esprema, pique bem e reserve.
Coloque óleo em uma panela, leve ao fogo alto, deixe aquecer, junte alho, cebola, doure levemente, acrescente tomates, refogue até ficarem macios, junte camarões frescos e cozinhe por alguns minutos, somente até ficarem rosados.
Adicione a mistura de camarão seco, a verdura picada, cubra com água e cozinhe, mexendo de vez em quando, até obter um molho com consistência de mingau ralo.
Tire do fogo, junte cheiro verde e misture.
Coloque o arroz cozido e bem quente em um prato de servir, cubra com o molho de camarão e leve imediatamente à mesa

Rendimento: 4 pessoas, 8 japoneses ou 16 nordestinos

Sugestão: Prepare o molho sem os camarões frescos e sirva o arroz-de-cuxá acompanhado de peixe frito

17 comentários:

pituco disse...

sr.tobias,

piramidal...resenha e receita

jazz com arroz-de-cuxá (minha dieta não admite, contudo parece-me bastante saboroso)...mistura interessante.

abraçsons
ps.e nada contra a festa momesca, muito pelo contrário...claro, sem essa variações contemporâneas de axés e coisa e tal...rs

Celijon Ramos disse...

Tobias, a receita é mesmo saborosa e evoca em nós maranhenses a suadade da tipicidade de nossa terra, nossa cultura. Daí chegaste rapidinho ao tambor-de-criola. Pois ontem, à noitinha, estava no centro de São Luís quando irrompe um baile público de carnaval, no meio da rua mesmo - a Jansen Müler. Era o baile do Loborarte, que revive o carnaval tradicional de São Luís. Eis que, quando me viro, vejo chegar todos os tambores do tambor-de-criola, sendo aquecidos ali mesmo numa fogueira improvisada que deixou cada tambor com a afinação perfeita. Ví, então, as mãos calejadas ritimadas descer sobre o couro dos tambores e aja a tocar, e a multidão a bailar. Foi pungada pra todo lado. Se eu gostasse de carnaval, tinha ficado logo por lá. Ao acordar, deparo-me seu excelente texto memorial do cuxá ao jazz. Obrigado pela excelsa guitarra matutina!

APÓSTOLO disse...

Bela resenha.
A faixa escolhida, "You Turned The Tables On Me", um clássico com a classe de Mundell Lowe / Gene Quill / Billy Taylor, Les Grinage e Ed Thigpen (sempre preciso), é uma peça de colecionador.
A receita é coisa de gente grande.

figbatera disse...

O arroz eu dispenso; tenho alergia a crustáceos...

John Lester disse...

Prezado Mr. Serralho, a coisa não foi bem assim, há detalhes omitidos em sua narrativa que poderiam deixar transparecer que eu não gosto de carnaval, quando na verdade eu simplesmente odeio tambores, de qualquer tipo e tamanho.

De qualquer forma, o arroz estava mesmo espetacular e nosso carnaval transcorre fluido ao som de Lowe.


Obrigado pela saborosa resenha.

Anônimo disse...

Carnaval é ótimo, especialmente p/ ouvir jazz, e visitar sites como este.Obrigada, Tobias.

Érico Cordeiro disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Érico Cordeiro disse...

Mestre Tobias, parabéns pela resenha e pela receita, além do enciclopédico conhecimento sobre a cultura maranhense. Abaixo, a letra de uma música de Gerude, compositor maranhense, que fala um pouco sobre a punga (ou pungada). Ideal para ouvir comendo um arroz de cuxá com uma torta de camarão seco:

"Se a pungada derrubar
Apenas uma forma de amar
Ai, ai, ai, ai,
A, a, a - ai, ai
Cafungar no cangote na nega
Um cheiro forte de pó
16
Uma paixão vibração
Da cabeça ao chamató
Se a pungada derrubar
Apenas uma forma de amar
Na pungada derrubou
apenas uma cena de amor
na Casa da Mina tambô rufou
Obá
a casa da mina tambô rufá
obá rufou
eu vou falando mal
tambor que não tem cachaça
eu vou falando mal"

Também encontrei essa verdadeira pérola, uma "versão" em inglês, digna dos melhores momentos da sessão "the book is on the table":

"If the pungada makes one stumble
it_ just one way of loving
Ah ah ah ah ah
To breath in the negra'_ neck [to blow in the negra's ear]
A strong smell of dust
A passion, a vibration
From head to toe
In the pungada stumbled
just one form of love
in the House of Mina the drum sounded
in the House of Mina the drum shall sound
I am denouncing it
a drum that doesn't have white rum
I am denouncing it"

thiago disse...

umbigada sinistra

Andre Tandeta disse...

Senhor Serralho,
excelentes resenha e escolha,parabens.
Mr. Lester,
parabens pela sinceridade. Eu pago as contas com tambores, nem sempre em dia ,é verdade,e convivo com eles ha mais de 40 anos sem problemas . Essa diferença entre nós em nada empana o brilho do seu excepcional gosto musical,culinario e enologico(existe essa palavra?).
E aproveito para perguntar:onde anda o Edú?
Abraço

Anônimo disse...

desc, não tem nada a ver, mas... não tem post/link para 'wise one', de bobby hutcherson?...

Anônimo disse...

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PREDADOR.- disse...

Como disse o "anônimo" aí em cima: estas necesitando ganar dinero? Sugestão: mudança do nome do blog de mr.Lester para Jazzseen - Jazz, vinho,livros finos com letras grandes e receitas culinárias. Aí sim vai ficar mais adequado a este blog. É receita que não acaba mais e o jazz tá ficando p'ra trás. Quanto ao Mundell Lowe, realmente é uma lenda viva. Guitarrista excepcional pouco divulgado e porque não dizer pouco conhecido de grande parcela dos jazzófilos. Está com "350 anos", ainda tocando fácil e com finesse, fazendo sua guitarra de "gato e sapato", chamando "Jesus de Genésio". Aí, vem os "famosos" críticos e dão duas estrêlas no album A Grand Night for Swing. Durma-se com um barulho desses!

APÓSTOLO disse...

Prezado PREDADOR:

Os "famosos" críticos estão engatinhando em MUNDELL LOWE. Qualquer album com ele é para 04 ou 05 estrelas e, ainda melhor, para ser digerido como uma receita musical da mais alta qualidade.
Enfim e como diria meu bom e infelizmente já falecido pai, "deixá-los falar que eles se calarão no vazio que conhecem".

Internauta Véia disse...

Receita com camarão é garantia de coisa boa! Agora, muito boa mesmo, com garantia de qualidade é a presença de Mundell Lowe!

pituco disse...

consegui baixar o áblum tv action jazz, onde mr.mundell lowe interpreta temas de seriados...não sei se é uma boa referência sobre o talento do guitarrista...pois assisti vários vídeos pelo youtube e pareceu-me que 'o som de mr.lowe é coisa de peixe grande'...rs

valeô a dica
abraçsons

Carioca da Vila disse...

Quero fazer o arroz de cuxá neste finde, mas uma dúvida:1 1/2 xícara de gergelim?É isso mesmo? Aguardo resposta de Mr.Tobias...Grata.