24/01/2011

Mestre: Hod O'Brien

Cabuloso! Foi assim que Lester reagiu à nossa visita à mais renomada academia de Vila Velha. Após seus trinta anos de fumo, vinte de vodka e dez de vinho, consegui convencer Lester a participar de uma aula de aerobahia, a modalidade mais indicada para retirar-lhe a volumosa pança que a natureza, em sua generosidade, tem feito brotar em torno de seu umbigo. É preciso ter fé meu amigo, dizia eu a Lester enquanto caminhávamos pelas calçadas esburacadas da Praia de Itapoã, bairro onde também fica localizada a loja Casa Bonita. Ao chegarmos, vimos estranhos acadêmicos observando-se a si mesmos nos inumeráveis espelhos do local. Dercileydi, nossa professora trans de aerobahia, recebeu-nos com aqueles sorrisinhos e gritinhos que Lester tanto desaprova. Dada a largada com voz firme e grossa, os alunos iniciaram uma vigorosa e complexa coreografia de dar inveja a Fernando Bicudo. Durante alguns minutos, Lester encontrou imensa dificuldade em balbuciar alguns movimentos, limitando-se a observar os vertiginosos passos desferidos pelos demais alunos, incentivados pelo animado eletroaxé. Ajeitando seu curioso colante vermelho de luta greco-romana, Lester decide que isso não ficaria assim: embora um pouco desordenado, o bravo guerreiro lança as pernas em arriscados movimentos centrífugos, ao mesmo tempo em que gira os braços em movimentos centrípetos, causando uma certa perplexidade na turma e atraindo a atenção de toda a academia. Dercileydi, que já foi à Bahia, aprova a iniciativa de Lester, adotando seus passos originais e aumentando a velocidade com que eram executados. Embora não conseguisse manter o sorriso no rosto como os demais alunos e observadores, Lester também acelera os passos, dessa vez girando a cabeça de leste para oeste, movimentando o quadril numa trajetória elíptica e levantando os pés até as orelhas, tudo alternadamente, para dar mais swing. E os 50 minutos de aerobahia passaram assim, num piscar de olhos. Aclamado por toda a academia, Lester rejeitou o convite para lecionar seu estilo revolucionário e, após receber abraços e beijos em troca de autógrafos, partiu dali para nunca mais voltar.

Mancando muito, Lester e eu dirigimo-nos à tal Casa Bonita,  que eu ainda não conhecia, embora sabedor de que ali podia-se ouvir um bom jazz e apreciar um bom vinho a preços sinceros. Encontramos Nardelli, o pintor siciliano, sentado sob um acolhedor toldo laranja. Degustava um Yacochuya 2000, malbec argentino produzido num dos vinhedos mais remotos do mundo que, segundo Christine Austin, autora do diminuto 500 Vinhos Tintos, publicado pela Marco Zero, fornece um vinho intenso e saboroso, com traços frutados de morango e amora preta, notas de licor e especiarias, tudo isso numa composição tânica harmoniosa. Nardelli, oferecendo-nos duas taças, observou que a safra 2000 estava esgotada no site da Grand Cru, mas algumas garrafas ainda sobreviviam climatizadas na Casa Bonita. Perguntei então quem era o pianista e John Lester respondeu imediatamente: Hod O'Brien! Estive nesse dia abençoado, 7 de julho de 2004, no Blues Alley, quando Hod lá se apresentava! Visivelmente emocionado, Lester comentou que o Blues Alley  é o clube  mais antigo de jazz em funcionamento. Fundado em 1965, já recebeu ícones do jazz como Dizzy Gillespie, Sarah Vaughan, Nancy Wilson, Grover Washington Jr., Ramsey Lewis, Charlie Byrd e Maynard Ferguson, entre outros.  Fica localizado em Washington, DC, no número 1073 da Avenida Winsconsin, em Georgetown, o coração histórico da cidade, num edifício de tijolos construído no século XVIII.

Nardelli, que nunca foi à Bahia, complementou: Hod é mais um desses mestres esquecidos do estilo denominado New York jazz piano. Nascido no dia 19 de janeiro de 1936, em Chicago, chega a New York no final da década de 1950, integrando-se rapidamente aos clubes locais e atuando com diversos músicos importantes, entre eles Pepper Adams, Kenny Burrell, Oscar Pettiford e Stan Getz. Aos 21 anos, Hod grava com Art Farmer, Donald Byrd e Idrees Sulieman o álbum clássico Three Trumpets, também conhecido como Trumpets All Out, para a Prestige. Ainda aos 21, Hod é convidado por Red Rodney para substituir Bill Evans no quinteto de Oscar Pettiford. Mais tarde, trabalharia no quarteto de J. R. Monterose, ao lado de Wilbur Ware e Elvin Jones. Entre os anos de 1963 e 1973, Hod afasta-se do jazz, indo estudar Matemática na Columbia University. Nesse período, chega a estudar composição com Charles Wourinen mas acaba retornando ao jazz, abrindo seu próprio clube, o The St. James Infirmary, onde lidera sua própria banda e recebe artistas convidados como Chet Baker, Roswell Rudd, Lee Konitz, Zoot Sims, Charlie Rouse e muitos outros. Além disso, apresenta-se durante cinco anos no famoso Gregory’s com o guitarrista  Joe Puma.


Enquanto a maioria dos pianistas da sua geração mergulhou nas ondas do rock ou da latin music, Hod manteve-se fiel ao Bebop, transformando-se num dos intérpretes mais puros do estilo, como Barry Harris e  poucos outros. Na década de 1980, Hod passa a se apresentar com a cantora Stephanie Nakasian , com quem se casa e passa a viver em Charlottesville,Virginia. Sempre atuante, Hod tem se apresentado em diversos clubes e festivais ao redor do mundo. Em maio de 2007, foi selecionado para se apresentar no Fujitsu 100 Gold Fingers Tour, no Japão, ao lado dos pianistas  Kenny Barron, Cedar Walton, Junior Mance, Toshiko Akiyoshi, Cyrus Chestnut, Benny Green, Don Friedman, Joao Donato e Gerald Clayton. Embora possua uma técnica perfeita, Hod nunca permitiu que sua velocidade deformasse as baladas ou que sua criatividade sufocasse os temas. Entre os seus excelentes álbuns como sideman ou líder, selecionamos a faixa How About You , retirada do álbum  Live At Blues Alley - Second Set, em trio com Ray Drummond (b) e Kenny Washington (d). 
 

17 comentários:

Andre Tandeta disse...

Tive a oportunidade de tocar no "Blues Alley" em 1994(como o tempo passa!!!).E' um dos melhores lugares em que ja toquei nesses trinta e cinco anos de profissão, como night club de jazz com certeza e' o melhor. E, pelo que eu soube e pude comprovar, não importa quem estiver tocando, ha uma plateia educada, calorosa e atentissima. Tenho dois discos muito bons gravados la.
Indo a Washington quem gosta de jazz deve ir la .

Andre Tandeta disse...

Memorias a parte não entendi isso:
"Enquanto a maioria dos pianistas da sua geração mergulhou nas ondas do rock ou da latin music"....Quem seriam esses pianistas? Chick Corea e Herbie Hancock provavelmente, mas "maioria"?Fiquei curioso.

Roberto Scardua disse...

Prezado Mestre Tandeta, nosso Departamento de Estatística já está trabalhando em sua solicitação.

E parabéns pelo belíssimo trabalho no Festival de Jazz do Rio!

Valeu.

Internauta Véia disse...

Depos de rir( que bom! )com as peripécias de Mr.Lester x aerobahia ( impensável! impossivel!), e ficar com água na boca, por causa do vinho,o som maravilhoso do piano de Hod O´Brian, que adoro!
Muito bom, mr. Roberto Scardua!
E que vontade de conhecer o Blues Alley...

pituco disse...

mr.scardua,

entre abs antes do chuveiro e um comentário nesse post bacanudo e hilário, opto por aqui...

master lester precisa experimentar as aulas de kick boxing e similares das que participo no gym que frequento, curiosamente no bairro de meguro, onde está a filial nipônica do blues alley...

sonzaço na radiola...obrigadão...e como é delicioso ouvir essas gravinas ao vivo...arigatozão

ps.mr.tandeta, seria possível postar alguma amostra aqui pra gente desse teu relicário musical registrado no famoso jazz spot???

ps.master lester, perfavore, não tente os steps desse bailado bahiano fora dos limites da academia...rs...assim, como eu às vezes me entusiasmo em algum confronto nas ruas...rs

abraçsonoros

John Lester disse...

Prezados amigos, como sempre Mr. Scardua amplifica e distorce as coisas. Não foi bem assim: não fomos a uma aula de aerobahia, mas sim de Muay Tai, ou box tailandês, arte que hoje domino e leciono nas horas vagas, por vezes em doloridos workshops.

E vejam só: Mestre Pituco detona as gordurinhas nas proximidades do Blues Alley japonês... Quem diria!

Grande abraço a todos, JL.

Andre Tandeta disse...

Pituco,
um disco gravado no Blues Alley e' do grupo "Fort Apache",liderado pelo trompetista e conguero(excepcional nos 2 instrumentos!) Jerry Gonzales, deve ser facil de achar,e' muito bom.
Abraço

pituco disse...

tandeta,

vou procurar...de '94 e contigo tocando, foi o que entendi...é isso?

valeô a dica
abraçsons

Andre Tandeta disse...

Pituco,
esse disco que recomendei foi gravado la no Blues Alley e e' excelente, insista pois vale a pena.
Toquei la fazendo parte do quarteto do saxofonista Raul Mascarenhas em setembro de 94,não foi feito um disco das apresentações(2 sets por noite, 2 noites).

Andre Tandeta disse...

Pituco,
agora entendi sua duvida.Escrevi la em cima "tenho dois discos gravados la".Eu quis dizer tenho no sentido de possuir, um deles e' esse que ja dei a dica o outro e' melhor deixar pra la pois não gosto, e' bem fraquinho apesar de ser de um artista bastante conhecido.

Salsa disse...

Camarada, vou pedir a vídeo aula para tentar extirpar a camada adiposa que, sobreposta ao meu tanquinho, tem me incomodado bastante. E, em tempo, o bacalhau está no freezer aguardando para inaugurar o toldo laranja. Separe um bom branco para acompanhar.
Abraços,

John Lester disse...

Prezado Mestre Salsa, já estamos com um Quinta do Feital Alvarinho Dorado Superior 2004 devidamente climatizado. Nada como um 91 pontos do Robert Parker para iniciarmos os trabalhos sob o toldo laranja.

Grande abraço, JL.

PREDADOR.- disse...

Hod O'Brien, Blues Alley, aerobahia, Casa Bonita, Nardelli, quadros, vinho, bacalhau, toldo laranja, dá uma mistura sensacional. Aproveito para recomendar a vocês, mr.Scardua e mr.Lester, frequentarem a academia de meu amigo Geraldinho, para participarem de uma ginástica pesada, mas ladeado de garotas lindas. Quer melhor que isto.Coisa de louco!! Quanto ao O'Brien, pianista nascido em 1936, com poucos trabalhos como líder, desconhecido da grande maioria dos jazzófilos, pouco mencionado pela crítica, mas um excelente músico. Trabalhou como side-man ao lado de "feras" do jazz, como por exemplo com Chet Baker e Warne Marsh- álbum "Blues for a reason" ou com Joe Puma e Red Mitchell-álbum "Shining Hour". Gostaria de destacar também dois discos de Hod liderando seus trios: "Ridin' High" e "Have Piano...Will Swing!". É isto mr.Scardua !! Valeu a lembrança do O'Brien.

LeoPontes disse...

Gente, boa tarde.
Como sinto-me pequenininho em frente a tantos degustadores e bacanudos que já estiveram em lugares que só em sonhos um dia qualquer poderei me permitir sonhar.
Continuo perseguindo o meu, pra quem sabe tiver a consciencia de aqui deixar alguma coisa, pois muitas delas sei que não me foram permitidas deixar, tais como filhos, netos e etctal.
O que posso desejar é que de alguma maneira meu som aqui se propague, com a qualidade e contudo que for me inerente e possivel.

Abrçs a todos

John Lester disse...

Prezado Leo, sua presença é sempre gratificante. Suas palavras, sempre inteligentes e gentis. Mas, cá entre nós, para quem nasceu no Complexo do Alemão, como eu, um toldo laranja realmente assusta. É como entrar no Lincoln Center e esbarrar no Marsalis e ainda ouvir um I'm sorry do trompetista.

Quando vier à Vila Velha, procure-nos: sabemos onde comer e beber bem a preços módicos em locais onde é proibida a entrada de menores.

Grande abraço, JL.

APÓSTOLO disse...

Um monumento de pianista com pleno dominio harmônico (que canhota!!!) e idéias sempre lembrando o tema.
Belíssima postagem e comentários que fazem viajar.

zoot disse...

Em homenagem ao carnaval, escutava eu John Coltrane tocando a linda Giant Steps, quando deparei-me com esse belíssimo How about you do Hod O'Brien, tocado com total competência e elegância. Mais um ensinamento nesse terreno delicioso e infinito chamado jazz. Thanks.