15/10/2009

Sapateando no ar

Sempre que há morte, lembro de Goeldi – existe algo de soturno em sua obra, ainda que ele fosse capaz de localizar um guarda-chuva vermelho na escuridão da noite. Goeldi dizia que podemos abandonar o mundo, mas o mundo não nos abandona. É mole? Se a gente pensar bem, a vida tem um quê de prisão, de folha de ponto, de suor agarrado no corpo. Certas horas, sobretudo quando o mês vai terminando e o salário já acabou, temos vontade de extrapolar nossa existência, alterá-la de alguma forma, sumir talvez, renascer, camuflarmo-nos, sair correndo em cima de um ônibus, dar cambalhotas na fila do supermercado, não sei bem. Quem me dera ser poeta, percorrer praias desertas recolhendo os robalos que saltam em meu colo, olhar para o sol e dizer: o que foi? Para os amigos que ainda se recuperam do grande salto no ar de Miguel Marvilla, deixo a faixa Air , retirada do álbum homônimo, sob o comando do estilhaçante pianista Cecil Taylor, em companhia de Archie Shepp (ts), Buell Neidlinger (b) e Denis Charles (b).

Nascido em New York, em 15 de março de 1929, Cecil transformou-se numa das principais figuras do avant garde jazz após a década de 1940, não apenas por seu virtuosismo – ele é considerado um dos maiores pianistas do século XX – mas também por sua forma de abordar o instrumento e por sua coragem artística. Como ele mesmo disse ao escritor John Litweiler, “na música negra nós pensamos o piano como um instrumento de percussão” e, nesse processo, a utilização da força física é elemento essencial. Em sua infância em Long Island, começa a aprender o piano aos cinco anos e, mais tarde, percussão. Após sérios estudos no New York College of Music e no New England Conservatory, em Boston, Cecil Taylor disse que aprendeu mais ouvindo os álbuns de Duke Ellington. Embora tenha demonstrado um certo interesse pela música clássica européia, sobretudo Stravinsky, Cecil teve como maiores influências músicos do jazz, como Ellington, os bateristas Sonny Greer e Chick Webb e uma série de pianistas, entre eles Fats Waller, Errol Garner, Thelonious Monk e Horace Silver. Após iniciar a carreira com veteranos do swing, como Oran ‘Hot Lips’ Page, Johnny Hodges e Lawrence Brown, na década de 1950 Cecil estabelece seus próprios conjuntos, desenvolvendo suas revolucionárias idéias musicais, comumente associadas ao free jazz. Seus primeiros parceiros foram Buell Neidlinger, Dennis Charles, Steve Lacy e Archie Shepp – é desse período seu desastroso encontro com John Coltrane – com os quais ainda manteve alguma conexão com o jazz mais comportado.

Na década de 1960, Cecil associa-se a músicos como Sunny Murray, Alan Silva e Jimmy Lyon, dedicando-se à criação de uma música puramente abstrata, sem qualquer conexão com o jazz de seu tempo e sem qualquer respeito aos conceitos usuais de tempo e tonalidade. Embora inteligente e complexa, sua música foi completamente ignorada pelo público e pela imprensa com a chegada escandalosa de Ornette Coleman a New York, em 1959, com seu “free jazz” rudimentar e escabroso. Apenas um seleto grupo de músicos reconheceu o valor da música radical que Cecil estava desenvolvendo, entre eles Albert Ayler e Gil Evans. Passando por sérias dificuldades, Cecil chega a lavar pratos para sobreviver, até que finalmente grava um par de álbuns para a Blue Note em 1966, iniciando assim um lento processo de reconhecimento entre seus pares. As oportunidades de gravação são escassas: em 1968 grava um álbum com a Jazz Composers Orchestra e, em 1969, realiza um concerto com Jimmy Lyons, Andrew Cyrille e Sam Rivers, lançado pelo selo francês Shandar. Na década de 1970, Cecil dedica-se à educação, lecionando na Winsconsin University e em escolas de Ohio e New Jersey e lança seu próprio selo, Unit Core, onde grava alguns álbuns. Após muita luta, consegue gravar para os selos Trio (Japão), Freedom (USA) e Enja (Europa). No início da década de 1980, Cecil começa a colher os frutos de seu trabalho, gravando regularmente para os selos europeus Soul Note e hatHUT, bem como, no final da década, para os selos Leo e FMP. Seus principais companheiros nesse período são, além do fiel escudeiro Lyon, Andrew Cyrille, Alan Silva, Sirone, Ronald Shannon Jackson, o violinista Ramsey Ameer, o trompetista Raphé Malik, Jerome Cooper, William Parker e o percussionista Rashid Bak. Sua música atonal evolui em sucessivas e densas torrentes sonoras, com dilúvios de notas em espirais tocadas com violência, quase ira, em improvisações aparentemente aleatórias que costumam perdurar por mais de duas horas, sem pausa. Ainda na década de 1980, Cecil grava dois importantes duos, com Mary Lou Williams (Embraced) e Max Roach (Historic Concerts), o que consolida seu reconhecimento perante os músicos de jazz.

Em 1985, grava seu primeiro álbum com música para big band e, no ano seguinte, perde o amigo e sideman de longa data Jimmy Lyon, vitimado por um câncer de pulmão. Em 1987, forma o Unit, com William Parker, Carlos Ward, Leroy Jenkins e Thurman Barker, grupo com o qual se apresenta em diversos concertos pela Europa, três deles lançados pelo selo Leo. Depois, opta pela formação em trio, trabalhando com William Parker e Tony Oxley. Em 1988, participa, com mais vinte músicos convidados, de uma série de concertos e workshops promovidos pela gravadora FMP em Berlin, cujo resultado foi registrado em 11 cd’s (Cecil Taylor In Berlin 88’), com gravações solo, em duo, em trio e com big band. Como resultado, é aclamado pela crítica como um dos quatro músicos mais inovadores do post-bop. Embora o trabalho de Cecil tenha influenciado uma série de músicos importantes do chamado free jazz, entre eles Alex Von Schlippenbach e Marilyn Crispell, o ouvinte médio não consegue observar qualquer estrutura lógica em sua música e, quando muito, identifica uma referência aqui ou uma citação acolá do mainstream jazz. Apesar disso, alguns estudiosos, como Ekkehard Jost (Free Jazz), John Litweiler (The Freedom Principle) ou Valerie Wilmer (As Serious As Your Life), alegam existir certa estrutura formal em sua música. O próprio Cecil não parece estar muito preocupado com a questão, alegando que sua música “trata de magia e de espíritos aprisionados”. Apaixonado pela dança e pela poesia, Cecil parece brincar com a crítica quando diz que “tenta reproduzir no teclado os passos que os dançarinos realizam no espaço”. Além de sua colaboração com dançarinos e coreógrafos, como Mikhail Baryshnikov e Dianne McIntyre, Cecil tem produzido seus próprios poemas e textos em prosa, entre eles um que trata dos “conceitos metodológicos da música negra”.

E música tem cor Miguel?

24 comentários:

Salsa disse...

Cheguei primeiro. Sabe, meu caro Lester, esse é justamente o contraponto sonoro necessário ao meu "estado d'alma" - a volúpia, a violência, o incontível. Um maremoto e o naufrágio.
Valeu o post.

pituco disse...

mr.lester,

esse sr.cecil tá com tudo...gdes sacadas,inclusive a de que piano é instrumento percussivo e o som tem movimento como num ballet sonoro...sacação bacanuda mesmo.

preciso ouvir mais e ler sobre esse músico poeta...obrigadão pela dica

amplexossonoros

Anônimo disse...

Bom post Lester.....a vida sempre nos dando a oportunidade do recomeço.

Vagner Pitta disse...

Acho o período inicial de Cecil maravilhoso, sabe. Digo do Jazz Advance até mais ou menos o Unity Sctructures...depois tem alguns razoáveis, mas confesso que Cecil nunca foi minha obcessão auditiva como é, por exemplo, Monk, o próprio Archie Shepp, Coltrane, Wynton Marsalis, o Vandermark Five e tantos outros(ótimo grupo de free jazz, por sinal).

Pra ser sincero, não vejo como argumentar sua abstração final, que parece ter sentido apenas pra ele mesmo e pros poucos admiradores da própria abstração.

No entanto, nos escritos acima, tú buscou supostas e boas fundamentações que pudessem dar sentido à música violenta e abstrata de Cecil.

É claro que algumas obras, mesmo quando abstratas, podem expressar um pouco da coerência artística e dos sentimentos que existem na alma do autor: afinal os próprios poetas são extremantes levados à abstração - uma abstração quase etílica, eu diria (rs). Mas, acho que em certo momento Cecil exagerou na dose de abstração e perdeu o rumo da sua própria arte.

Acredito que Van Gogh, Matisse, Picasso, Pollock...todos tomavam suas doses de cachaça, de absinto...mas acredito que eles iam até aquele limite onde o artista não perde o poder de direcionar e fundamenta - de forma empírica - sua própria arte.

Minhas condolências aos amigos do poeta falecido. E meus parabéns ao mano Jay Lester pela ótima resenha dedicada ao polêmico Cecil Taylor!

thiago disse...

tecladas sinistras

edú disse...

O jazz tem uma cor: ela é naturalmente do belo.Sou fã incondicional de Cecil mesmo quando sua música me irrita.Afinal sua proposta é desacomodar o sentido auditivo com sua musica e o verbal com sua poesia.

Jorge Elias disse...

O absurdo se encerra com a morte.
Não sei se Miguel gostaria de ser chamado de poeta Maratimba, mas já que nasceu em Marataízes, talvez caiba esse comentário.
Para quem tem Mar e Villa no nome, e exprimiu, como poucos capixabas, seus sentimentos e angústias, seus amores e temores, a música deve ter sim as cores indefinidas dos tempos.

Grande abraço,

Jorge Elias

John Lester disse...

Prezados argonautas, obrigado pelas palavras de solidariedade. Continuo acreditando que o poeta é nosso único elo com a beleza, aquela beleza grega do bom e do justo. Qualquer outra elaboração sobre o belo corre risco de perder-se nas notas emitidas pelo piano de Cecil Taylor.

Grande abraço a todos e um boas-vindas ao poeta Jorge Elias, cujo blog e livro recomendo.

JL

olmiro muller disse...

Não se brinca com a sensibilidade de cada um. Por isso, tanto a poesia de Miguel Marvilla, cuja obra não conheço, quanto a música de Cecil Taylor, que pouco ouvi, devem ser respeitadas porque, com certeza, comoveram leitores e ouvintes. As artes são a quintessência da comunicação sensitiva.

Érico Cordeiro disse...

Capitão e demais tripulantes da bela-nave jazzseen,
Faço questão de repetir, enfatizar, repetir em uníssono:
"artes são a quintessência da comunicação sensitiva".
Belíssimo!
Como também é belíssimo o texto postado pelo Cap. Lester.
Taylor não é dos meus favoritos, mas merece nosso respeito.
Abraços a todos.

Marília Deleuz disse...

Dá até vontade de chorar, bju!

Olga disse...

Obrigada pelo comentário.Não concordas comigo e eu concordo plenamente com você, escrevo sim na tentativa de modificar alguma coisa, ou pelo menos me fazer entender através do que escrevo.Não esquecendo:Seu blog é uma preciosidade para o resgate da música quase não ouvida, e da música que sempre estamos a ouvir!

Olga disse...

Mais um detalhe, aquela pequena citação fiz a pouco tempo.O contexto me fez colocar aquelas palavras, ainda que eu defenda o contrário.Incrível complexidade do ser humano!

PREDADOR.- disse...

Não adianta buscar fundamentações que respaldem essa dita música de Taylor: agressiva, violenta, abstrata, irritante. Gosto de preservar meus ouvidos para escutar sòmente jazz.

John Lester disse...

Prezados Mestre Olmiro e Mr. Cordeiro, obrigado pelas visitas. O Jazzseen agradece.

E quero agradecer a nossa nova amiga, Olga, pelas palavras de carinho e incentivo. E, Marília, não chore não, ok?

Não podemos esquecer também do comentário simpático de nosso velho e alquebrado amigo Predador, o último do boppers.

Grande abraço, JL.

Rogério Coimbra disse...

Afinal, o que acontecerá ( se já não aconteceu) com os boppers ?

Roberto Scardua disse...

Prezado Mestre Coimbra, os boppers ou estão mortos ou à mingua. Lamentável!

Rogério Coimbra disse...

Carissimo Scardua:
Pietà.
Boppers, swingers, seja lá, it´s all jazz.
Nós é que estamos ficando mais vividos, seja o que for, somos tantos outros mais ouvidos.

Sergio disse...

Sr, Mr. Lester a coisa de uma semana, não paro de ouvir um trompetista, pelo visto não muito conhecido. Tiro essa conclusão pelos comentários – ninguém q comentou até agora disse q o conhecia bem - os seus discos bastante difíceis de se encontrar nas lojas virtuais, na própria modern sound daqui não há muita coisa... E muito provavelmente, o fato d’ele ter se auto-exilado na Europa, ainda em começo de carreira seja a razão para um músico com tamanho talento não estar em tanta evidência quanto merece. O nome do artista é Benny Bailey. Gostaria que desse uma passada pelo sônico e deixasse suas impressões, o q sabe a respeito do artista, etc... A minha intenção é postar, não digo a obra – embora esta esteja meio esquecida, mas pelo menos mais uns 2 ou 3 álbuns. Todos excelentes. E quando digo todos digo os que já ouvi – não exatamente em ordem cronológica:

“Angel Eyes” 1995 / “For Heaven's Sake” 1989 / “Island” 1976 / “The Satchimo Legacy” 2000 / “Big Brass” 1960 / “Four For Jazz & Benny Bailey (A Land Of Dolls)” / “The Balkan In My Soul” nem encontrei as datas destes... Grand Slam 1978 (postado) / Soul Eyes (postado) 1968. Como vês estou embalado em Bailey. Daí a minha curiosidade do que sabes sobre o moço. Por isso mesmo procurei uma postagem mais antiga pra não entrar com assunto totalmente diferente do q se trata.

Grato!

John Lester disse...

Ok Mr. Sônico. Seu pedido, aqui no Jazzseen, é uma ordem.

Grande abraço, JL.

MJ FALCÃO disse...

Contente por decidir seguir o meu blog.
Sempre bom a música que escolhe.
o falcão

John Lester disse...

Voa Falcão, voa...

Anônimo disse...

mais um espirito livre nos deixou...
Que ele esteja em otima companhia, excelentes textos, e boa musica

Anônimo disse...

ML, ao pensar sobre o Marvilla, imaginei se o jazzseen tb nao seria uma especie de CÈU na in
ternet...
grande abraço